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Carl Sagan em 1996: “Existem boas razões para ajudar os mais pobres e empoderar as mulheres”

Em 1996, pouco tempo antes de morrer, Carl Sagan deu uma entrevista ao Psychology Today. Veja abaixo:

06/06/2021 às 19h14
Por: Redação Fonte: https://universoracionalista.org/carl-sagan-em-1996-existem-boas-razoes-para-ajudar-os-mais-pobres-e-empoderar-as-mulheres/
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Carl Sagan em 1996: “Existem boas razões para ajudar os mais pobres e empoderar as mulheres”

Traduzido por Julio Batista
Original de Psychology Today (Jan. 1996)

Do espaço sideral ao espaço interior, Carl Sagan quer saber uma coisa: por que preferimos o que é bom ao que é verdadeiro? Sagan exalta o nosso senso natural de admiração – equilibrado por habilidades de detecção de mentiras. Sagan vê nossa incapacidade nacional de traduzir a ciência para o público aparecendo para nos assombrar, como através do veredicto de OJ Simpson.

Psychology Today: Você foi mais associado a questões do espaço sideral. Mas você também têm se voltado muito para um mundo do espaço interior, a mente humana.

Carl Sagan: Bem, a fronteira entre o espaço e a Terra é puramente arbitrária. E provavelmente sempre estarei interessado neste plano – é o meu favorito. Eu escrevi vários livros que têm a ver com a evolução dos humanos, inteligência humana, emoções humanas. Portanto, não é uma novidade para mim concentrar-me nos humanos. A maioria das pessoas com quem lido são humanas. Então, eu tenho muita experiência com isso.

PT: Alguns de seus melhores amigos são humanos. Seu novo livro, O Mundo Assombrado pelos Demônios, às vezes parece uma litania de como a mente é enganada: por sua própria memória, por seus sentidos, por raciocínio de má qualidade. Existe vida inteligente na Terra?

CS: Bem, claro. Mas nossa inteligência é limitada, e quem poderia esperar o contrário? Somos imperfeitos, e sabedoria e prudência residem na compreensão de nossas imperfeições. Se ignorarmos nossas imperfeições, alegando que é muito deprimente nos concentrarmos nelas, limitaremos muito nossas opções futuras. Por outro lado, se sabemos onde estão nossas limitações, não apenas no pensamento, mas nas coisas emocionais, se sabemos de alguma predisposição hereditária que temos para o etnocentrismo, a xenofobia, hierarquias de dominação, então temos a chance de moderar essas tendências. Se ignorarmos quaisquer predisposições genéticas nessas direções, não faremos nenhum esforço sério para melhorá-las e ficaremos em muito pior estado. Essa é uma daquelas questões que toda geração precisa aprender de novo, porque toda geração tem as mesmas predisposições hereditárias.

PT: Mas algumas das questões que você aborda no livro parecem especialmente endêmicas nos tempos atuais: OVNIs, memória reprimida. Esse tipo de coisa está se popularizando agora mais do que antes, à medida que nos aproximamos do milênio?

CS: Não. Se você se concentrar nos primeiros séculos da era cristã, digamos, ou na época de Mesmer na França, ou em quase qualquer época da história humana, você encontrará tantos exemplos quanto os de nosso tempo presente. Essa é uma característica humana endêmica – ser crédulo, acreditar no que os outros nos dizem, preferir o que é bom ao que é verdade.

PT: Mas até agora, nunca tínhamos sido capazes de nos explodirmos… [referência a guerras nucleares e terrorismo]

CS: Certo. Os perigos de não pensar com clareza são muito maiores agora do que nunca. Não é que haja algo novo em nossa maneira de pensar, é que o pensamento crédulo e confuso pode ser muito mais letal de uma forma que nunca foi antes.

PT: Você aponta para a probabilidade estatística de pessoas no poder aparecerem periodicamente sob a forma de Stalin ou de Hitler. Dada essa probabilidade, e dada a proliferação nuclear, quais são seus sentimentos sobre o futuro?

CS: Bem, é um problema muito sério. Felizmente, estamos em um momento em que os Estados Unidos e a ex-União Soviética estão se desfazendo de seus arsenais nucleares. De acordo com os tratados atuais, acordados se não ratificados, cada lado terá algo como 3.000 armas estratégicas e sistemas de lançamento na primeira década do século 21, de 10 vezes esse número. Então, isso é uma notícia muito boa. Por outro lado, existem apenas cerca de 2.300 grandes cidades no planeta, portanto, se cada lado receber 3.000 armas, isso significa que cada lado retém a capacidade de aniquilar todas as grandes cidades da Terra. Essa certamente não é uma notícia confortável, porque, se você esperar o suficiente, certamente terá um louco no comando de um desses países.

PT: Você está dizendo que é inevitável?

Exatas duas décadas após essa entrevista, os Estados Unidos elegia Donald Trump. (Créditos: Reuters/M. Gentry)

CS: Se você olhar a história do mundo, verá que essas pessoas chegam regularmente ao poder. Podemos nos consolar que nos Estados Unidos isso não aconteceu conosco, mas mesmo aqui eu diria que várias vezes em nossa história recente chegamos perto de ter alguém perigosamente incompetente ou bêbado ou louco no poder em um tempo de crise. Hitler e Stalin são lembretes de que os países mais avançados do planeta podem ter tais líderes.

PT: Você passa uma boa parte do O Mundo Assombrado pelos Demônios falando sobre – usando o seu termo – analfabetismo científico. O que você acha que devemos fazer? É claro que tudo está indo na direção errada.

CS: Bem, a primeira coisa que eu diria é que cada geração lamentou a suposta falta de educação da próxima geração, e isso remonta a algumas das primeiras tabuletas sumérias que temos, cerca de 5000 anos atrás.

PT: Com os mais velhos reclamando dos jovens da época?

CS: Sim: “Eles não são tão espertos quanto eram na minha geração. Eles não estão motivados. Eles não fazem o dever de casa.” Então, sempre existe o perigo de um idoso excêntrico comparando a sua geração com a dos jovens e concluindo que a geração deles trabalhava mais duro, era mais séria, tinha melhores valores, melhor música, e assim por diante.

No entanto, é claro que há uma estupidez desenfreada em andamento, no qual não saber as coisas é considerado uma virtude e no qual saber as coisas é considerado um motivo de constrangimento. Eu não levanto minhas mãos em desespero. Mas tento indicar que é um problema muito sério que não tem um único ponto a ser enfrentado.

O Sputnik 1 foi o primeiro satélite a orbitar a Terra. O empreendimento soviético foi pioneiro na corrida espacial. (Créditos: Domínio público)

Não é que se você simplesmente aumentasse os salários dos professores, você resolveria o problema. O problema é endêmico. É presente em todos os níveis. É presente na cultura das próprias crianças. É presente no governo federal, estadual e local. É presente na mídia. Ele presente nos conselhos escolares e nos contribuintes que lidam com títulos escolares. Não há apenas um ponto para enfrentar. E é muito difícil imaginar uma mudança séria, a menos que haja uma mudança de comportamento em muitos níveis por muitas pessoas diferentes. Isso envolve repensar, envolve mudanças de valores, envolve dinheiro – não por cinismo, mas entendendo como o mundo real funciona. Vai ser muito difícil fazer essa mudança, a menos que, como aconteceu com o Sputnik, haja uma aparente ameaça à segurança nacional que exija que aprendamos mais ciências.

PT: Precisamos de uma explosão como o Sputnik na consciência pública para nos fazer pensar, acordar.

CS: Temos o exemplo do final dos anos 50 e início dos anos 60. Não sei se essa é a única coisa que pode nos fazer realizar isso. Um surto súbito de sabedoria talvez seria um choque do tipo.

PT: Acho que não devemos contar com isso. O Sputnik funcionou em parte, eu acho, porque as pessoas acreditavam que a ciência iria curar nossos males médicos e resolver os problemas do mundo. As pessoas hoje não têm a mesma visão da ciência como uma panaceia.

CS: Como alguém cuja vida foi salva nos últimos seis meses pela ciência médica, certamente não compartilho do ceticismo. A vida de quase todas as pessoas na Terra depende da maneira mais íntima da ciência e da tecnologia – não ter entusiasmo pela ciência e pela tecnologia não é apenas tolice, é suicídio.

Sem tecnologia agrícola, por exemplo, a Terra poderia sustentar apenas dezenas de milhões de pessoas, em vez de bilhões. Isso significa que quase todo mundo na terra, 99% de nós, deve o próprio fato de estarmos vivos e não termos morrido de fome à existência da tecnologia.

PT: Você acabou de se referir às suas próprias insinuações sobre a mortalidade. Isso mudou sua perspectiva? Você se recuperou de algo que poderia ter sido muito sério.

CS: Foi muito sério. É uma doença da medula óssea chamada mielodisplasia, que é invariavelmente fatal se não for tratada. Fiz um transplante de medula óssea no Centro de Pesquisa do Câncer de Fred Hutchinson em Seattle [nos Estados Unidos]. Eu tive sorte que minha única irmã era uma combinação perfeita. Tive sorte, mas também fui beneficiado por décadas de experiência que aquela instituição, e a ciência médica em geral, teve em transplante de medula óssea. A idade em que você pode fazer um transplante está aumentando a cada ano. Acho que sou a pessoa mais velha a fazer um transplante.

PT: A ciência salvou sua vida.

CS: Não é a primeira vez que quase morri. Esta é a terceira vez que tenho que lidar com insinuações de mortalidade. E todas as vezes é uma experiência de construção de caráter. Você tem uma perspectiva muito mais clara sobre o que é importante e o que não é, a preciosidade e a beleza da vida e a importância da família e de tentar salvaguardar um futuro digno de nossos filhos. Eu recomendaria quase morrer a todos. Eu acho que é uma experiência muito boa.

PT: Provavelmente uma vez é o suficiente para a maioria das pessoas. Em parte porque a ciência fez um trabalho maravilhoso de salvar vidas, temos uma crise populacional, pelo menos aos olhos de algumas pessoas. Isso te preocupa?

CS: Ah sim, absolutamente. Mas também está claro como resolver o problema. Envolve questões sociais complexas e há objeções religiosas e nacionalistas para lidar com a crise. Como acontece com todas as crises, se não for tratada, explodirá na nossa cara. A forma de tratá-la é muito ameaçadora, pois são os bilhões de pessoas mais pobres que se reproduzem mais rapidamente, por simples razões de sobrevivência. Se você tem filhos e não tem seguro social, há uma chance de que alguns de seus filhos sobrevivam até a sua velhice e cuidem de você. É um cálculo simples que os mais pobres fazem, para ter muitos filhos. Portanto, a primeira coisa a fazer é melhorar a autossuficiência do bilhão de pessoas mais pobres do planeta, o que diminuirá a caridade das principais religiões. Não é apenas uma boa ética, é bom no sentido mais prático.

Também deve haver um suprimento sempre disponível de anticoncepcionais seguros e fáceis de usar. E o terceiro item chave é o empoderamento político das mulheres. Existem sociedades em que a renda per capita é alta, mas as mulheres são tão oprimidas que não podem ter uma palavra a dizer se devem ou não ter filhos. Existem boas razões para ajudar as pessoas mais pobres e boas razões para empoderar as mulheres, além da crise populacional. Mas a crise populacional deixa claro que esses deveriam ser os objetivos principais.

PT: Você não é apenas um cientista, você também é uma celebridade. Por causa dessa visibilidade, você pode ser um divulgador de certos assuntos, caso queira.

CS: Desde a infância, a ocupação mais prazerosa que eu poderia imaginar era ser cientista. Tinha um romance que nada mais que eu conheço chegou perto. E eu nunca perdi isso. Meu objetivo sempre foi ser apenas um cientista ativo. É verdade que estudei algumas áreas muito exóticas da ciência. Eu estava interessado em explorar outros planetas em uma época em que o homem nem havia saído da atmosfera terrestre. Na verdade, passei grande parte dos últimos 35 anos explorando o Sistema Solar, meu sonho de infância.

Mas, ao mesmo tempo, sou um cidadão, um pai, um avô. Estou preocupado com o futuro por todos os tipos de razões facilmente compreensíveis dos mamíferos, e prefiro trabalhar muito para construir um futuro melhor, mesmo se eu falhar, do que não fazer nenhuma tentativa.

PT: Você gasta metade do seu tempo fazendo pesquisas e a outra metade cumprindo o dever de soldado como um dos cientistas mais famosos do mundo?

CS: Não tento controlar meu tempo de um para o outro. Eles meio que fluem naturalmente um para o outro. Por exemplo, fiz minha tese de doutorado sobre o efeito estufa de Vênus, nunca imaginando que o efeito estufa seria um grande problema de política global 30 anos depois.

Existem vários outros casos – o inverno nuclear é um deles – em que a ciência e a política pública fluíram uma para a outra sem esforço. E a coisa mais natural do mundo, se você encontrar uma ciência na qual seja até certo ponto especialista, é falar abertamente sobre um perigo para a civilização global da espécie humana. Se você não vai, quem vai falar? Só não vejo como dois compartimentos hermeticamente fechados que você pula de um para o outro. Muitas vezes, simplesmente flui da maneira mais natural.

Eu tenho uma oportunidade que, infelizmente, outras pessoas que são iguais ou mais capazes às vezes não têm, de se comunicar com o público em geral. E é uma oportunidade que deve ser usada com cuidado, não desperdiçada. E usada com responsabilidade. Mas se eu tiver oportunidades de falar com o público, certamente não irei recusar se tiver algo pelo que falar.

PT: Você ainda tem o mesmo senso de admiração sobre a ciência que tinha há 25 anos?

CS: Na semana passada, um planeta parece ter sido descoberto em torno de uma estrela próxima chamada 51 Pegasi. E é um planeta muito perto da estrela, muito mais perto do que Mercúrio está do nosso Sol. Mas não é um pequeno mundo rochoso como Mercúrio ou Vênus ou a Terra. É um mundo gigante, provavelmente como Júpiter.

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