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A rainha que expôs a arrogância dos reis: a história de Judit Polgár, a Beth Harmon da vida real

“ELA É UM TIGRE NO TABULEIRO DE XADREZ. ELA TEM UM INSTINTO ABSOLUTAMENTE ASSASSINO. VOCÊ COMETE UM ERRO E ELA VAI DIRETO NA SUA GARGANTA.” — JOEL BENJAMIN, EX-CAMPEÃO AMERICANO DE XADREZ

Redação
Por: Redação
14/04/2021 às 19h54
A rainha que expôs a arrogância dos reis: a história de Judit Polgár, a Beth Harmon da vida real

Pouco tempo após a sua estreia, O Gambito da Rainha se transformou na minissérie mais vista da Netflix, com 62 milhões de reproduções nos primeiros 28 dias. A série acompanha a vida de Beth Harmon – extraordinária prodígio do xadrez, amante da moda e viciada em calmantes – em sua jornada do orfanato ao campeonato internacional de xadrez e os obstáculos que ela supera para se tornar não apenas uma boa jogadora, mas a melhor. Embora a série não seja baseada em eventos reais, há três irmãs que podem entender o que Beth Harmon passou: Susan, Sofia e Judit Polgár.

O trio estourou no cenário internacional do xadrez na década de 1980, esmagando o domínio masculino do jogo quando eram apenas adolescentes. Judit, a irmã caçula, foi a que mais se destacou, e até hoje é amplamente considerada a melhor enxadrista de todos os tempos. Nesse artigo, dividido em três segmentos (A rainha que expôs a arrogância dos reisA Beth Harmon da vida real, e Um xeque-mate no sexismo), você vai conhecer um pouco mais da trajetória histórica da jogadora húngara, suas semelhanças com Beth Harmon e suas experiências no mundo sexista do xadrez.

A rainha que expôs a arrogância dos reis

“Gênios não nascem, são feitos”. Essa ideia, defendida pelo pai da famosa enxadrista, marcaria o destino das irmãs Susan, Sofia e Judit. László Polgár sempre defendeu que as crianças são capazes de conquistas excepcionais quando recebem uma educação especializada desce cedo. Ele e sua esposa Klára, ambos pedagogos, educaram suas três filhas em casa, em uma cidade na Hungria, e uma das coisas que ensinaram às meninas, foi a jogar xadrez. As três não demoraram a mostrar ótimas habilidades para o jogo e após algum tempo de treino já começaram a participar de torneios. Tanto Susan quanto Sofia conquistaram títulos importantes no mundo do xadrez (Grande Mestre e Mestre Internacional); no entanto, a irmã caçula, Judit, foi a que mais se destacou.

Durante o processo de aprendizagem, Judit e suas irmãs tiveram de enfrentar muitos jogadores profissionais, convidados pelos pais para desafiá-las. Uma noite, durante um jogo entre Susan e um Mestre Internacional, houve uma espécie de impasse e os dois tiveram de acordar Judit para pedir ajuda. Ainda um pouco sonolenta, a filha mais nova deu a resposta que eles buscavam e voltou para a cama, deixando todos impressionados com sua inteligência e seu preparo para o jogo. Com apenas cinco anos, Judit venceu um amigo da família sem sequer olhar para o tabuleiro. Aos sete, ela e sua irmã Sofia (então com nove) competiram de olhos vendados e venceram dois mestres, e ainda reclamaram que seus oponentes eram lentos demais. Quando completou nove anos, Judit jogou seu primeiro torneio nos Estados Unidos e aos 12 conquistou o título de Mestre Internacional, a enxadrista mais jovem da história a realizar essa façanha. Nessa idade, ela ainda estava abraçando seu ursinho enquanto brincava.

Apesar de seguir os passos de suas irmãs mais velhas, Judit ainda enfrentava uma grande quantidade de sexismo. Quando ela tinha 13 anos, o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov disse à Sports Illustrated que a natureza trabalharia contra ela, “e muito em breve”. “Ela tem um talento fantástico para o xadrez, mas, afinal de contas, é uma mulher”, disse ele. “Tudo se resume às imperfeições da psique feminina. Nenhuma mulher pode sustentar uma batalha prolongada”. Uma década depois, depois de perder um jogo para ela, Kasparov mudou de ideia. “As irmãs Polgár mostraram que não há limitações inerentes à sua aptidão – uma ideia que muitos jogadores do sexo masculino se recusaram a aceitar até que foram esmagados sem cerimônia por uma garota de 12 anos com um rabo de cavalo”.

Judit era uma menina em um mundo de homens adultos e não faltou quem que subestimasse seu poder. Seu comportamento tranquilo e modesto durante os jogos contrastava com a intensidade de suas jogadas. Um jornalista chegou a escrever sobre seus olhos “assassinos”: “A íris é tão cinza, tão escura, que quase não se diferencia das pupilas. O contraste com o cabelo ruivo gera um efeito surpreendente”. Judit tinha apenas 12 anos quando entrou para a lista dos 100 melhores enxadristas do mundo e 15 quando se tornou Grande Mestre, a mais jovem da história até então. As conquistas das irmãs Polgár se transformaram em tema de muitos livros e artigos, o que as levou à fama, para muito além do mundo do xadrez.

Judit participou de inúmeros campeonatos e foi ocupando postos cada vez mais altos no mundo do xadrez. Em 1997, o Grande Mestre Robert Byrne escreveu no New York Times: “Há muito tempo há um debate animado sobre quem é o jogador mais forte de todos. Candidatos proeminentes são Bobby Fischer, Garry Kasparov, Jose Raul Capablanca, Alexander Alekhine ou Emanuel Lasker. Mas não há discussão sobre a maior jogadora: ela é Judit Polgár, de 21 anos”.

Em 2004, Judit decidiu dar um tempo com o xadrez para ter o primeiro filho. Enquanto isso, sua irmã, Susan, voltou a competir e se transformou na melhor enxadrista do mundo. Judit voltou no ano seguinte e seus resultados a colocaram na oitava posição entre os melhores do mundo (incluindo homens e mulheres). Em 2006, Judit teve o segundo filho e mais uma vez se retirou das competições. Algum tempo depois, ela afirmou que “comparado à maternidade, o xadrez é como férias” e decidiu voltar aos jogos, pois eles eram parte fundamental de sua vida.

Judit se aposentou das competições em 2014, mas não do mundo do xadrez; ela escreveu uma série de livros para crianças e sua irmã Sofia ficou encarregada das ilustrações. Além disso, criou a Judit Polgár Chess Foundation e lutou para que o xadrez fosse colocado como parte do plano de estudos nacional na Hungria. Segundo ela, o jogo desperta importantes habilidades nas crianças, entre as quais, a resolução de problemas e o pensamento estratégico. Seu programa de treinamento para crianças em idade pré-escolar e primária se afirmou, e atualmente integra o currículo nacional das escolas húngaras. Em 2024, as Olimpíadas de Xadrez se realizam em sua cidade natal, a capital Budapeste, e Judit já tem uma jovem talentosa em vista para o torneio: Kata Karácsonyi, primeiro lugar no ranking mundial dos menores de 14 anos.

A Beth Harmon da vida real

Beth Harmon é uma novata no mundo do xadrez e não entende por que homens e mulheres não podem jogar juntos. Judit Polgár, por outro lado, raramente jogava em torneios ou divisões específicas para mulheres e nunca competiu pelo Campeonato Mundial Feminino: “Sempre digo que as mulheres devem ter a autoconfiança de que são tão boas quanto os jogadores masculinos, mas apenas se estiverem dispostas a trabalhar e levar isso a sério tanto quanto os jogadores masculinos”, declarou Polgár, em entrevista para o site NPR.

Na série, o grande rival que Beth luta para vencer é o enxadrista soviético Vasily Borgov. Judit enfrentou (e venceu) grandes jogadores, mas as partidas contra Garry Kasparov, um dos maiores da história, são as mais famosas e interessantes. Polgár e Kasparov sempre tiveram uma relação estremecida. Tudo começou em Linares, em 1994, quando Kasparov realizou uma jogada proibida, voltando o cavalo de um lance perdedor, mesmo já tendo largado a peça no tabuleiro. A enxadrista, de apenas 17 anos, não disse nada, pois não queria brigar com o campeão mundial e tinha medo de sua reclamação ser recusada. Judit perdeu o jogo, um duro golpe emocional que acabou por afetar muitos jogos que vieram depois. Algo semelhante acontece com Beth, após uma derrota contra Borgov na série. Um vídeo da partida comprovou a irregularidade e, ainda durante o torneio, Judit tirou satisfações com Kasparov, que se limitou a afirmar publicamente que estava com a consciência tranquila.

Mas os embates entre os dois ainda teriam outros capítulos e o sempre polêmico Kasparov até mesmo se utilizou do fato de Polgár ser uma mulher para menosprezar sua ascensão, chegando a dizer que o lugar de uma mulher era cuidando dos filhos. Judit teve sua vingança em setembro de 2002. No torneio que colocou a Rússia contra o resto do mundo, Polgár o derrotou. Kasparov, que jogou com as pretas e usou a defesa de Berlim, acabou caindo na própria armadilha: Judit usou uma linha de jogo que Kasparov havia usado no passado e conseguiu colocar dois peões à sua frente , o que fez com que Kasparov acabasse abandonando a partida. Foi a primeira vez na história do xadrez que a número 1 feminina venceu oficialmente o número 1 masculino.

Uma semelhança notável entre Beth Harmon e Judit Polgár é o estilo de jogo, já que ambas são particularmente agressivas em suas aberturas e usam técnicas e ataques sempre muito ousadas. O próprio Kasparov, ao se referir ao jogo de Polgár, disse: “se ‘jogar como uma menina’ significasse alguma coisa no xadrez, significaria agressão implacável”. Uma diferença que vale a pena mencionar é que Judit Polgár sempre mostrou um bom desempenho em jogos rápidos, diferente de Beth que, na série, é derrotada mais de uma vez por não se sentir muito à vontade nesse estilo de jogo. Contudo, à medida que o tempo vai passando ela consegue se adaptar e passa a conquistar muitas vitórias.

Um xeque-mate no sexismo

Até hoje se mantém a crença, sobretudo entre os profissionais do sexo masculino, de que as mulheres simplesmente não estão à altura dos homens. Nos anos 1970, o ex-campeão mundial e americano Bobby Fischer dizia que as mulheres são “fracas” e “burras” demais para os xadrez. Garry Kasparov, o “Ogro de Baku”, chegou a declarar em 1989: “O xadrez não combina com as mulheres. As mulheres, por natureza, não são enxadristas excepcionais: não são grandes lutadoras”. Kasparov, que esteve envolvido na produção de O Gambito da Rainha como consultor especializado, até voltou atrás em sua declaração, mas tais opiniões continuam muito difundidas no mundo enxadrístico.

“Ao assistir à série, tive momentos de déjà-vu”, revela Polgár em entrevista para o site DW. “O Gambito da Rainha reproduz com muito realismo a linguagem corporal, os movimentos, até mesmo as jogadas. No entanto, a série não tematiza suficientemente os aspectos sombrios da condição feminina no mundo do xadrez”, observa Polgár. “Os homens sempre confrontam a ambiciosa Beth Harmon com respeito e reconhecimento, e sem qualquer piada sexista, mas, na verdade, é muito mais difícil para as mulheres se destacarem em um ambiente como esse”, ressalta.

Muitas vezes os oponentes masculinos de Polgár não conseguiam admitir ter perdido para uma mulher. Não era raro Polgár ter que escutar comentários como “você não é nada mal para uma garota”, e subterfúgios do gênero “eu estava num dia ruim”. Ela relata que houve jogadores que se negaram a lhe dar a mão e um chegou a bater a cabeça no tabuleiro após ser derrotado.

Talvez o verdadeiro significado de O Gambito da Rainha esteja além da tela. A enorme popularidade do programa está corrigindo as desigualdades de gênero no xadrez, levando a um grande aumento do interesse pelo jogo, especialmente entre as mulheres. Em outro nível prático, o show ajudou instrutoras de xadrez. Anastasiya Karlovich, uma grande mestre, destacou, em entrevista para o site Varsity, que os pais de seus alunos de xadrez agora têm mais respeito por ela.

A personagem Beth Harmon e a enxadrista Judit Polgár têm histórias de vida muito diferentes e não nasceram na mesma época. No entanto, ambas possuem um talento inquestionável, enfrentaram desafios semelhantes com relação às competições e redefiniram as expectativas das mulheres no mundo do xadrez. Quem sabe, o sucesso mundial de O Gambito da Rainha venha a inspirar novos talentos femininos e causar, de vez, um xeque-mate no sexismo enxadrístico.

Alguns feitos notáveis da carreira de Judit Polgár (1976):

Aos 12 anos, tornou-se a enxadrista mais jovem a entrar na lista de classificação dos 100 melhores jogadores da FIDE, ocupando a 55º posição no ranking FIDE de janeiro de 1989.

Aos 15 anos e 4 meses, tornou-se o mais jovem Grande Mestre até então, quebrando o recorde anteriormente detido pelo ex-campeão mundial Bobby Fischer.

Aos 19 anos, tornou-se a única mulher a ser classificada entre os dez melhores enxadristas do mundo, ocupando a 10º posição no ranking FIDE de janeiro de 1996.

Aos 26 anos, tornou-se a única mulher a vencer uma partida contra um jogador número um do mundo, derrotando Garry Kasparov no match entre a Rússia e o Resto do Mundo, em setembro de 2002.

Aos 29 anos, tornou-se a primeira mulher a competir pelo título mundial absoluto, quando disputou a fase final do Campeonato Mundial de Xadrez de 2005.

É a primeira, e até agora única, mulher a ultrapassar 2700 pontos de rating, atingindo uma classificação de pico na carreira de 2735 pontos nos rankings FIDE de julho e outubro de 2005 e ocupando a 8º posição nos ranking FIDE de abril, julho e outubro de 2005.

É a única mulher a derrotar onze atuais ou ex-campeões mundiais no xadrez rápido ou clássico: Magnus Carlsen, Anatoly Karpov, Garry Kasparov, Vladimir Kramnik, Boris Spassky, Vasily Smyslov, Veselin Topalov, Viswanathan Anand, Ruslan Ponomariov, Alexander Khalifman e Rustam Kasimdzhanov.

Foi a jogadora número 1 do mundo de janeiro de 1989 até 13 de agosto de 2014, quando se aposentou das competições oficiais.

Textos que inspiraram a criação desse artigo:

Quem é Judit Polgár, a enxadrista cuja história lembra a da protagonista de “O Gambito da Rainha”

Beth, de ”O Gambito da Rainha”, é uma mistura de Bobby Fischer e Judit Polgár, cujas histórias são impressionantes… e reais

A verdadeira Beth Harmon: Judit Polgár

Três irmãs adolescentes que foram ”um grande experimento”: O Gambito da Rainha da vida real

Vamos jogar: O Gambito da Rainha e o sexismo institucional

Uma divisão de gênero no esporte definitivo da mente

Os Grandes Jogadores de Xadrez: Judit Polgár

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