Governo, setor produtivo, trabalhadores e pesquisadores divergiram, na Câmara dos Deputados, quanto ao modelo agrário e às estratégias de enfrentamento à miséria e à fome no Brasil. O amplo debate foi promovido nesta quarta-feira (25) pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, com foco nos reflexos do agronegócio exportador no desabastecimento alimentar interno. Todos admitiram que a produção de alimentos e a segurança alimentar têm sido impactadas pela pandemia de Covid-19, desvalorização cambial e fatores climáticos e de mercado. Mas o consenso acabou aí.
Integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) Sílvio Porto denunciou falta de clareza do governo quanto aos estoques reguladores de alimentos e às políticas de controle da inflação.
Em 2020, arroz (76%) e feijão fradinho (68%) estiveram na lista de maior IPCA acumulado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos sete primeiros meses deste ano, o custo da cesta básica registrou aumento de 28,5% em Porto Alegre e de 22,1% em São Paulo, em comparação com o mesmo período do ano passado, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Segundo Sílvio Porto, o governo tem abandonado instrumentos de política agrícola essenciais para o planejamento e o controle da produção.
“O governo abriu mão de formar estoque público e diz que isso é política do passado. Mas, quando olhamos para outros países, inclusive os Estados Unidos, tem lá um bom nível de estoque para garantir problemas de abastecimento", disse. Ainda segundo Porto, o "Brasil produz pouco, não dispõe de estoque público e o governo, neste sentido, fica de expectador: qualquer problema que ocorra, é a iniciativa privada que vai ter que dar conta para resolver”.
Estratégias do governo
Já o secretário de política agrícola do Ministério da Agricultura, Guilherme Bastos Filho, garante que o governo monitora a produção de vários produtos e definiu um conjunto de estratégias para o gerenciamento dos preços agrícolas.
“Em termos de mercado, criar um ambiente favorável ao aumento da produção, não só com as linhas de crédito do governo, mas com aquilo que o setor privado ajuda a financiar; ampliar o comércio exterior; incentivar a armazenagem privada; e incentivar outros usos e consumos. Além do incentivo ao uso de ferramentas de gestão de risco, como mercados futuros, opções e o próprio seguro rural”, observou.
Bastos Filho apresentou perspectiva otimista para a produção agrícola com base nas operações de crédito, custeio e investimento do atual Plano Safra e do Pronaf, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar. A expectativa é chegar a 300 milhões de toneladas de grãos.
No entanto, a professora Cátia Grisa, do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o professor Raoni Azeredo, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), criticaram a concentração da produção em soja e milho e o pouco estímulo do governo à produção de alimentos básicos.
A expansão da fronteira da soja, antes restrita ao chamado Matopiba – de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, já estaria criando novas siglas (acrônimos) como Sealba, de Sergipe, Alagoas e Bahia; e Amacro, de Amazonas, Acre e Rondônia.
O secretário de política agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares (Contag), Alair dos Santos, disse que o foco do agronegócio é a exportação, o que não ajudaria a reduzir os 19 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, segundo dados da Rede de Pesquisadores em Segurança Alimentar.
“É o aumento da fome e da miséria no momento em que o agronegócio, nos últimos dois anos, vem ampliando a produção de grãos”, observou.
Distribuição de renda
Já o superintendente técnico da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Bruno Lucchi, garante que a maior parte da produção do agronegócio é consumida internamente. Lucchi defende outra estratégia para o combate à fome.
“O maior problema hoje da miséria e da fome é a distribuição de renda. É um problema da economia. Não é um problema do agro. O agro é parte da solução, porque gera divisas e empregos. Temos hoje 13 a 14 milhões de desempregados que não têm condições de comprar alimentos, independentemente do preço”, disse.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado Carlos Veras (PT-PE), disse esperar que o debate “sensibilize” o governo a ampliar crédito, assistência técnica e políticas públicas para os pequenos agricultores.
“O recurso liberado pelo Garantia Safra e Seguro Safra vai gerar o desenvolvimento do município, porque as pessoas vão comprar alimento. O dinheiro do trabalhador e da trabalhadora não vai para a bolsa de valores nem para fora do país. O dinheiro vai para o mercado, para a farmácia e gera o desenvolvimento local”, disse.
Privatizações
Durante a audiência, Sânia Reis, das Centrais de Abastecimento de Minas Gerais, fez um apelo aos parlamentares pela aprovação dos projetos de decreto legislativo (PDL 489/16 e PDL 180/21), que tramitam apensados, e que retiram a Ceasa e a Companhia de Armazéns e Silos de Minas Gerais (Casemg) do Plano Nacional de Desestatização.
Os projetos dos deputados Padre João (PT-MG) e Rogério Correia (PT-MG) estão prontos para votação no Plenário da Câmara. Por serem “essenciais para a segurança alimentar e o escoamento da agricultura familiar”, Sânia Reis avalia que essas empresas devem permanecer estatais.
Um dos organizadores do debate, Padre João destacou que "as políticas públicas são importantes na questão do abastecimento alimentar, e a formação de estoques estratégicos e públicos pelos governos são um fator preponderante para evitar elevação de preços e desabastecimentos alimentar".