Ao enviar sua carta de demissão ao primeiro-ministro Boris Johnson no fim do dia de sábado (26/6), o Secretário Nacional de Saúde, Matt Hancock, sucumbiu a uma torrente de críticas a ele que já haviam se intensificado há cerca de um mês, mas que atingiram o ponto máximo de ebulição depois da publicação de fotos de um beijo tórrido em sua assessora de imprensa dentro do gabinete oficial.
Sua queda não foi surpresa, diante do escândalo das fotos publicadas pelo tabloide The Sun e do processo de fritura que já vinha sofrendo. Tem sido tachado de hipócrita, por pregar uma coisa e fazer outra na vida privada.
Mas a saída do político não coloca fim a um variado cardápio de controvérsias que torno de sua atuação e do caso. Controvérsias que não dizem respeito apenas à condenação moral de ele ter traído a esposa de um casamento de 15 anos com uma assessora também casada e com filhos.
Os problemas para ele e para o Partido Conservador podem estar apenas começando. E custar caro ao Governo, que até agora conseguiu se esquivar bem de outras denúncias. Mas quando envolve a pandemia, um nervo exposto para a opinião pública e para a mídia, os desdobramentos podem ser diferentes.
Embora tenha como protagonista justamente a assessora de imprensa, encarregada de proteger o chefe de escândalos, o drama de Matt Hancock é sobretudo uma crise de imagem.
Há pelo menos quatro questões envolvendo a história de Matt Hancock, formado pela prestigiada universidade de Harvard, onde conheceu Gina Coladangelo, de 43 anos, a assessora com quem foi flagrado aos beijos: a conduta moral, o desrespeito às regras do isolamento social, o favorecimento — na contratação da assessora e em contratos firmados com o irmão dela –, e a falha de segurança que permitiu a instalação de uma câmera dentro do gabinete de um membro da cúpula do Governo.
Em situação normal, talvez a conduta moral de um homem público que desrespeitou a mulher, Martha Hancock, uma osteopata que veio de família de nobres e sempre se manteve discreta, fosse o pecado mais grave. Em uma sociedade conservadora como a britânica, este é sempre um tema que desperta reação negativa.
Mas na era da pandemia, foi outro aspecto do caso que se sobressaiu para a sociedade e que se mostrou o mais indefensável: Matt Hancock desrespeitou as regras de isolamento que ele próprio ajudou a criar e que defendeu publicamente durante meses a fio.
Regras que privaram a população de ver parentes, abraçar entes queridos, velar seus mortos, encontrar amigos e parentes, trabalhar e se divertir.
Examinando-se os comentários nas redes sociais, as declarações de políticos e figuras públicas e os comentários em entrevistas sobre o caso, percebe-se o quanto o “faça o que eu diga mas não faça o que eu faço” foi inaceitável. Desde que o caso veio à tona, a imprensa e as redes sociais reprisaram à exaustão comentários que o Secretário havia feito em relação a situações semelhantes.
Secretário recomendou não abraçar as avós
Em 2020, quando Neil Ferguson, um dos principais membros do grupo de cientistas que assessorava o governo na gestão da pandemia foi flagrado visitando uma namorada em uma cidade distante, Hancock disse que ele deveria ser alvo de investigação policial.
Há poucas semanas, em uma entrevista na TV em maio em que discorria sobre o significado do afrouxamento das medidas de distanciamento, recomendou que não se devia abraçar as avós.
A cena do beijo foi capturada em maio, quando o país ainda estava em lockdown, reabrindo aos poucos. Naquele momento, aproximar-se de uma pessoa que não morasse na mesma residência era estritamente proibido para qualquer mortal.
E não apenas Hancock, mas o partido a que pertence, o Conservador, tornaram-se alvo de críticas reforçando uma imagem de privilégios dos poderosos, para quem as regras não valem.
Na manhã de domingo, o apresentador de um importante programa de debates políticos que vai ao ar pela SkyNews, Trevor Philips, foi um dos que expressou sua revolta. Ele questionou duramente o Secretário Nacional para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, usando seu exemplo pessoal de ter perdido uma filha recentemente e ter respeitado as regras impostas pelo governo, agora desrespeitadas.
Ao saber que as fotos seriam publicadas, na noite de quinta-feira, Hancock avisou a mulher e a separação entre os dois foi selada. Ela foi vista saindo da casa da família com malas.
Não foi tomada de surpresa pelo jornal, pelo menos. Mas ao contrário do que a maioria das pessoas esperava, ele não pediu demissão. Nem foi demitido pelo primeiro-ministro Boris Johnson.
A complacência de Johnson foi tão alvo de críticas quando o apego de seu secretário ao cargo. Até porque há dúvidas sobre o quanto Johnson apreciava de fato o trabalho de seu braço-direito na pandemia.
Há poucas semanas, o poderoso ex-assessor do primeiro-ministro, Dominic Cummings, que perdeu o cargo em uma disputa interna de poder no fim de 2020, divulgou mensagens de WhatsApp trocadas entre ele e o chefe em que Hancock foi chamado de “f* hopeless” (uma forma rude de reforçar a classificação de “incompetente”).
Quando as mensagens vazaram, Johnson tentou contemporizar e reforçou apoio público ao Secretário. No dia da publicação das fotos, Hancock divulgou uma mensagem desculpando-se por ter quebrado o isolamento social, mas não se referiu às demais críticas (o favorecimento na contratação da assessora, ou a exposição de sua família).
Boris Johnson soltou uma nota oficial dizendo confiar no Secretário e que considerava “o caso encerrado”. Seria ótimo se bastasse encerrar polêmicas por decreto. E ele esqueceu de combinar com a torcida do Manchester, do Chelsea, do Tottenham.
A pressão continuou a aumentar, e no fim da tarde surgiu a notícia, revelada pela Sky News, de que Roberto, irmão de Gina Coladangelo, havia sido agraciado com um contrato de £ 28 milhões para fornecer insumos ao sistema público de saúde.
No sábado, a imprensa inteira deu destaque ao caso. A hashtag pedindo a saída do Secretário estava nos trending topics das redes sociais.
No meio da tarde, Hancock entregou a carta de demissão e em seguida fez um pronunciamento no Twitter, em que se mostra arrependido e diz que não deveria ter quebrado as regras. Mas não dá explicações sobre a contratação de Coladangelo, nem sobre a lisura do contrato com o irmão dela.
Johnson divulgou em seguida uma carta aceitando a demissão e fazendo elogios rasgados ao desempenho do Secretário. Porém, não se referiu ao deslize, o que provocou reação furiosa pela ausência de uma recriminação (ou pelo menos um lamento) quanto à desobediência ao protocolo de distanciamento social.
Integrantes do próprio partido Conservador engrossaram o coro dos que reclamavam desde a sexta-feira sobre a falta de atitude firme por parte do governo.
Parte deles certamente por acreditar que o incidente era imperdoável, e outra parte talvez por divergências com Hancock a respeito da manutenção do isolamento por tanto tempo, medida que não agrada aos setores do partido ligados ao mundo dos negócios.
Keir Starmer, líder do Partido Trabalhista, de oposição, disse no Twitter que Johnson é que deveria ter tido a iniciativa de demitir o auxiliar, e não o contrário.
O partido já solicitou formalmente à Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, uma investigação policial sobre a quebra das regras de isolamento social, que se tornou crime. A mesma que o próprio Matt Hancock cobrou para outros que fizeram o mesmo que ele.
A história que se tornou uma das mais graves crises políticas para o governo de Boris Johnson começou há mais de 20 anos quando Matt Hancock e Gina Coladangelo se conheceram na Universidade de Oxford.
Ela já trabalhou para uma empresa de lobby, e figura em seu perfil nas redes sociais como Diretora de Marketing e Comunicação da griffe Oliver Bonas, que vende roupas, acessórios e objetos decorativos, fundada por seu marido Oliver Tress.
Em março de 2020 foi contratada como assessora não remunerada na Secretaria de Saúde por seis meses. Ao final do período foi efetivada com um salário de £ 15 mil por ano.
Até o momento, nem o governo nem a Secretaria revelaram detalhes de algum processo formal de seleção e contratação conforme as normas que rege o serviço público no Reino Unido. No Linkedin, o emprego aparece como um trabalho de meio expediente.
Uma fonte disse ao The Sunday Times: “Antes de Matt fazer algo grande, ele falará com Gina. Ela sabe de tudo.”
Com acesso direto ao principal homem do governo responsável por decidir sobre as compras de insumos médicos para o combate à pandemia, Coladangelo ficou na berlinda também depois da história do contrato do governo com a empresa dirigida por seu irmão, a Partnering Health Limited (PHL Group), especialista na prestação de serviços de urgência e cuidados primários a pacientes do NHS, o sistema público de saúde.
Outros rumores que ficam no limite entre vida privada e pública dão conta de que ela viajou com o chefe para um encontro do G7, e que poderia ter dormido com Hancock — o que seria uma nova quebra das regras do isolamento.
A assessora foi vista saindo da casa onde morava com o marido depois que a confusão explodiu. Os boatos são de que o casal está realmente apaixonado, não sendo apenas um caso fortuito. E que deve se unir.
Como em cachorro morto muitos gostam de bater, novas denúncias envolvendo Matt Hancock começaram a surgir, embora ele já tenha problemas de sobra. Uma delas, publicada pelo jornal The Times neste domingo, é uma falta grave no país.
Ele foi acusado de ter utilizado uma conta no Gmail para tratar de assuntos do governo desde março de 2020, incluindo negociações sobre compras de insumo para a pandemia.
Mensagens privadas ficam fora do escrutínio das autoridades que fiscalizam atos do Governo e fora do alcance da imprensa, que pode solicitar cópias de comunicações oficiais mas não tem acesso àquelas que circulam em canais privados. A oposição também já solicitou investigação sobre as mensagens.
A mulher traída virou alvo de simpatia do público. Na manhã de domingo, a hashtag #Martha estava em alta nas redes sociais. Ela sofre de “Covid longa”, em que os efeitos da doença perduram por meses. Pegou o vírus do marido, e muitos comentavam se ele teria contraído da amante.
O assédio da imprensa a ela também foi criticado por muitos que reproduziram as imagens da perseguição de fotógrafos.
Entre os “abalos secundários” do terremoto Hancock, a origem das imagens é um que deve ainda render desdobramentos importantes. Quando o caso se tornou público, o governo anunciou a intenção de abrir uma investigação para saber quem tinha vazado. Mas há uma outra pergunta mais importante: quem instalou a câmera?
Depois de uma varredura, a câmera foi encontrada dentro de um detector de fumaça. Não parecia ser uma câmera de segurança oficial, do sistema do prédio onde fica a Secretaria Nacional de Saúde, pois o Secretário afirmou desconhecer que ela estava lá. Segundo o jornal The Times, agentes começaram a vasculhar outras dependências ministeriais para ver se há mais câmeras escondidas.
Uma das suspeitas é de que algum fornecedor que tenha acesso às imagens tenha copiado-as ou filmado de seu próprio telefone para vazar ao jornal. A preocupação é com o vazamento de segredos oficiais para governos hostis ao Reino Unido, como a Rússia e a China, com quem o país tem relacionamento diplomático marcado por tensões e acusações de espionagem.
A quantidade de histórias diferentes associadas ao caso de Matt Hancock tem todos os elementos para continuar na pauta da imprensa, da política e da sociedade por um bom tempo.O curioso é que a foto do beijo foi publicada em um tabloide, um tipo de jornal sensacionalista frequentemente criticado por invadir a privacidade de pessoas famosas.
Nesse caso, no entanto, o que a notícia revelou foi mais do que uma infidelidade de duas pessoas casadas. Foi a infidelidade do mais importante homem do governo a cargo da mais importante crise que o mundo enfrenta aos princípios que ele próprio e a administração que representa impuseram à população. Isso é mais do que fofoca de gente famosa.