A obra de Carl Sagan (1934-1996), O Mundo Assombrado pelos Demônios (The Demon-haunted wolrd), publicada em 1995, parece antecipar o caótico cenário que a pandemia tem revelado: a ciência é uma vela no escuro que precisa lidar, por um lado, com a trupe de negacionistas que buscam apagá-la e, por outro, com a hipótese de que a melhor forma de vivermos bem é acreditando no poder da escuridão. É exatamente sobre a tênue linha entre ciência e pseudociência, opinião e argumentação, crença e saber sistematizado, ignorância e conhecimento que a tipografia filosófica de Sagan permite diagnosticar a existência de “demônios” que, constantemente, assombram o mundo.
Ao contrário de outros tempos, os demônios hodiernos não usurpam apenas o discurso científico (para manipulá-lo na ótica de suas insanas ideologias, entre as quais estão triturar a diferença cultural, eugenizar o comportamento e homogeneizar os próprios interesses políticos), mas procuram instrumentalizar o aparato do poder político soberano para reconstruir o discurso calcado em sua weltanschauung (visão de mundo). De qualquer modo, o diagnóstico do presente pode começar quando a igreja, uma espécie de adversária à ciência moderna, ergue-se contra os negacionistas e reafirma sua voz à favor da pesquisa científica. Afinal, teria o espaço político deixado de fomentar a ciência para iludir-se, novamente, com a imaginação grotesca do próprio pensamento?
A resposta é não. Precisamos separar, antes de mais nada, o espaço público democrático, de um lado, e a imaginação grotesca do poder político, do outro. Enquanto a ciência consolidou-se sobre o exercício do livre pensar, da crítica, da investigação e da subordinação das paixões às evidências, a imaginação grotesca busca anestesiar a pluralidade de ideias através da vigilância e eliminação dos corpos e das mentes de seus adversários. Assim, extinguir uma política pública que incide sobre a alimentação dos mais vulneráveis, por exemplo, não deixa de ser uma clara estratégia da imaginação grotesca, bem como retirar direitos e garantias trabalhistas a fim de sucumbir a existência da vida diante dos interesses da burguesia. Em nossos tempos, escassos de lucidez e bom senso, não é preciso ser comunista para ver o esquartejamento da cultura em prol de uma ideologia arbitrária do capital, assim como também não precisamos ser judeus para assistir, mais uma vez, o genocídio contra a diversidade étnica, racial, religiosa ou de gênero.
Este horizonte político que sufoca e esmaga o pensamento crítico é aquele que também marginaliza a ciência. Assim como um médico, no qual a catarse sobre o paciente buscar encontrar a patologia e identificar suas causas e tratamento, este sujeito contemporâneo parece ter abandonado sua função na história e optado pela sofisticação espúria dos demônios que, agora, já não vivem mais da e na escuridão. Eles estão aí, ora na “praça”, ora no “mercado”, ora nas “igrejas”, ora no “gerenciamento da saúde” e, infelizmente, na “gestão do espaço público”. Não estão satisfeitos apenas em obter prazer sobre a cegueira intelectual que ronda a gênese da sociedade, mas procuram aperfeiçoar os mecanismos de controle, disciplina e automação da vida singular. Investem na disseminação de “notícias falsas”, por fim, como recurso político para incitar a polêmica vazia, obter apoio e manobrar a consciência. Não acendem velas; ao contrário, procuram apagar a credulidade daqueles que confiam na pesquisa como instrumento de aperfeiçoamento de si mesmo e da sociedade.
A imaginação grotesca só próspera porque se aproveita da ausência de solidez intelectual. Isso, obviamente, não significa que ela atinge mais fecundamente aqueles poucos que se sentaram nos bancos escolares e tiveram a oportunidade de realizar a experiência do esclarecimento. Ao contrário, a imaginação grotesca consegue ali proliferar porque encontrou matéria orgânica suficiente que fora nutrida com uma pitada generosa de má-fé. Há, portanto, em alguns casos – uma vez que toda generalização é estúpida e irracional – uma cumplicidade intrínseca entre os monstros e aqueles que obtêm o mesmo gozo no exercício da monstruosidade. É por isso que, nos tempos atuais, a ciência precisa lidar não apenas com os problemas inerentes ao método, mas também como afirmação pedagógico-política diante da colonização do seu espaço e da sua vitalidade. Como retrucou a pesquisadora Natalia Pasternak, durante depoimento na CPI da Covid-19, a “ciência não tem dois lados”, isto é, não depende do obscurantismo para perpetuar sua identidade. “Ouvir um lado e ouvir outro”, por sua vez, é uma experiência dialética significativa desde que as armas do embate sejam argumentos, ideias e racionalidade, o que não parece ser o caso quando consideramos aquilo que a política governamental brasileira procura fomentar.
De todo modo, não podemos negar que há uma crise interna na ciência, particularmente acentuada no último século, a qual tem repensado a existência do próprio método científico. Popper, Bachelard, Kuhn, Lakatos e Feyerabend, por exemplo, dedicaram-se à história da ciência para refundar uma espécie de olhar crítico sobre a forma como a ciência adquire vida e perpetua-se no tempo. Neste sentido, se a indução é um critério insuficiente para provar a verdade de uma generalização, como afirma Popper em A Lógica da Pesquisa Científica, o problema da demarcação científica torna-se indispensável às decisões de caráter metodológico. Agora, aceitar que algo seja científico considerando apenas as possíveis experiências perceptuais de base empírica, segundo ele, é pura ingenuidade do psicologismo que abraça nosso pensamento. Os enredos e fantasias da hidroxicloroquina, por exemplo, são recheados daquilo que Popper já havia condenado.
Para polemizar o método científico é necessário um exercício mais significativo do que o sadismo das próprias paixões. Embora alguma parcela da Ciência, ou melhor, daqueles que controlam os discursos oficiais da Ciência, esteja interessada em mutilar as Humanidades, foi justamente através deste confronto que nos distanciamos da modernidade e optamos por avaliar as bases epistemológicas do modo como produzimos conhecimento. Vale recordar, aqui, a expressão de Sagan quando afirma, então, que “talvez a distinção mais clara entre ciência e a pseudociência seja o fato de que a primeira sabe avaliar com mais perspicácia as imperfeições e a falibilidade humanas do que a segunda (ou a revelação “infalível”)”. Neste caso, como poderíamos avaliar o comportamento de um negacionista que opta em colocar o ônus da prova ao adversário para sustentar suas opiniões falaciosas?
O negacionista não está interessado em demonstrar as razões e os argumentos de sua crença. Ele segue uma combinação de palavras sem qualquer sentido ou concordância, exceto sobre a tese que pretende instalar no imaginário grotesco dos outros. Para que isso ocorra, ele não prova a verdade de sua afirmação, mas segue jogando a responsabilidade ao adversário, mesmo quando este já lhe mostrou, em sucessivas ocasiões, a falsidade daquilo que ele acredita. O negacionista, portanto, crê piamente que o adversário mostrará a verdade de seu argumento e, ao final, admitirá que na ausência de evidências suas hipóteses estavam corretas. Afinal, se B disse para S (sociedade), mesmo sem evidências ou provas, que acredita no funcionamento de C, e B consegue apoiadores para C, deve ser verdadeiro que o consenso desta ‘maioria’ esteja correto.
A falácia anterior mostra que hoje, mais do que nunca, deveríamos inverter o ônus da prova: não é a sociedade que deve provar a falsidade da pseudociência, mas é a pseudociência que deveria negar os elementos empíricos e probatórios apresentados pela ciência. Mas, por que a pseudociência parece germinar tão bem e agregar tantos seguidores e simpatizantes? Sagan tem uma resposta: “a pseudociência é adotada na mesma proporção em que a verdadeira ciência é mal compreendida – a não ser que a linguagem falhe nesse ponto. Se alguém nunca ouviu falar de ciência (muito menos de como ela funciona), dificilmente pode ter consciência de estar abraçando a pseudociência” (O mundo Assombrado pelos Demônios, p.32). Parece evidente, portanto, que o primeiro diagnóstico que temos é derivado de uma deficiência histórica de acesso à Educação. Investimos pouco e mal na formação cultural das pessoas, particularmente se considerarmos a disseminação das Humanidades como disciplina crítica na formação dos processos epistêmicos de aprendizagem.
Entretanto, a abordagem do acesso à Educação resolve parcialmente o problema dos negacionistas. Em que pese a manipulação ideológica sobre as massas, há uma proliferação de informações falsas de negacionistas altamente letrados. Nestes casos, diferente de um primeiro grupo constituído essencialmente por sujeitos carentes de formação e saber crítico, trata-se de pura má-fé. Não há ingenuidade em seus discursos, mas apenas o ranço autoritário, recalcado e patológico de sujeitos que pretendem dominar o mundo e, assim como denunciado por Sagan, torná-lo escuro. É apenas neste ambiente escuro que podem copular, digerir seu ódio e alimentar a tirania de seu próprio clã. Por isso, a espada da ciência, parafraseando Sagan, precisa também lutar contra a política e seus vícios, uma vez que “os erros estão se tornando caros demais”.
Negacionistas, de um modo geral, são sujeitos ingênuos diante da ciência. Alimentam suas crenças em uma visão arcaica do método científico moderno, particularmente na hipótese de que o domínio da natureza ou é absoluto, eterno e imutável ou, então, os procedimentos devem ser tomados como falsos e/ou irracionais. É importante, contra eles, recordar a crítica de Paul Feyerabend, em A Ciência em uma sociedade livre: “(…) a Ciência não é sacrossanta. O simples fato de ela existir, ser admirada e produzir resultados não é suficiente para fazer dela uma medida de excelência. A Ciência moderna surgiu das objeções globais ao que ocorria antes e contra o próprio racionalismo, a ideia de que existem regras e padrões gerais que direcionam nossos negócios, inclusive os do conhecimento, oriundos das objeções globais ao senso comum” (p.22-23). Isso significa que, segundo Feyerabend, o fato de a Ciência ser plural ou anárquica em seus métodos, isto é, não ser mais uma unidade, mostra que ela não consiste apenas em fatos e conclusões extraídas de fatos. A Ciência é composta de “ideias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante” (p.33). A educação científica dos negacionistas, portanto, parece estar condicionada ao papel já assumido pelos “roedores neopositivistas” na década de 1930. Feyerabend indicará, por exemplo, que em uma sociedade democrática a ciência tem de ser protegida das ideologias, embora acredite que, em alguns casos, “a ciência deveria ser ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade”.
Há, por fim, uma diferença significativa entre a ciência e os “demônios” negacionistas: enquanto a primeira está interessada em colocar seus resultados à avaliação dos pares (por exemplo, no processo conhecido como double peer and blind review), ao controle das agências governamentais e à crítica do espaço público, o segundo grupo prefere enclausurar-se exclusivamente na redoma de seus apoiadores e legionários. Estes últimos estão convictos, portanto, de que a “rainha louca” de sua imaginação grotesca deve, na ausência de evidências e argumentos, impor-se através da violência do discurso oficial. Entretanto, quando este discurso oficial não produz os resultados esperados, buscam o anonimato das redes virtuais para insuflar o odor pútrido das convicções que não conseguem sustentar à luz do dia. Assim, enquanto “a ciência prospera com seus erros, eliminando-os um a um”, conforme afirma Sagan, os negacionistas e sua pseudociência procuram hipóteses formuladas “de modo a se tornar invulneráveis a qualquer experimento que ofereça uma perspectiva de refutação, para que em princípio não possam ser invalidadas” (p.39).
Denunciá-los já não é suficiente. É preciso combatê-los e, rapidamente, levá-los aos Tribunais Internacionais pelos crimes omissivos e comissivos que confessam publicamente. A ciência em uma sociedade livre, portanto, não há de admitir que o jogo político da imaginação grotesca continue invertendo o ônus da prova, assombrando o livre pensar e cooptando nosso senso crítico.
Léo Peruzzo Júnior é professor de pós-graduação em Filosofia (PUCPR) e dos departamentos de Filosofia da FAE e da Faculdade Vicentina.