Há pouco mais de um ano, em fevereiro de 2020, a polícia italiana invadiu a casa de Andrea Piombetti, em Senigalia, uma pequena cidade de 41 mil habitantes no litoral nordeste do país. No local, encontraram mais de mil exemplares de cactos em uma estufa improvisada, sendo que 955 deles eram de espécies raras vindas do Chile.
Leia também: Policial é condenado a três anos de prisão por traficar 185 tartarugas
A apreensão, a maior da chamada "Operação Atacama", escancarou o tráfico internacional de cactos raros, uma realidade que pode comprometer a biodiversidade do deserto chileno, onde muitas dessas espécies estão ameçadas por conta da biopirataria e da falta de regulamentação para coletas na natureza.
O próprio Piombetti, um colecionador e vendedor de plantas exóticas, já era conhecido dos policiais. Em 2013, uma carga de mais de 600 cactos chilenos endereçada a ele foi apreendida, mas a demora da Justiça italiana fez com que o caso prescrevesse antes que ele fosse formalmente processado.
"Esse é o problema com a maioria dos crimes ambientais na Itália, depois de quatro ou cinco anos eles não podem ser punidos", disse o tenente-coronel Simone Cecchini, que chefia a divisão ambiental da polícia italiana, em entrevista ao New York Times. "Desta vez, o promotor disse que será mais rápido, porque quer evitar que o que aconteceu em 2013 se repita".
O valor da carga apreendida no começo do ano passado surpreende. No mercado paralelo, as plantas podem ser vendidas por até 1,2 milhão de dólares (cerca de R$ 6 milhões). O impacto desse tipo de crime na biodiversidade mundial é inegável. Além de serem raras naturalmente por serem encontradas em um ambiente árido, essas espécies levam décadas e, em alguns casos, séculos, para se desenvolver.
Um artigo científico publicado na revista Nature calcula que das 1.500 espécies de cactos existentes em todo o planeta, quase 30% estão sob risco de extinção por causa, principalmente do tráfico e comércio ilegal de plantas. Algo que passa mais despercebido por não tratar de animais, que desperam naturalmente mais atenção.
Para o biólogo Pablo Guerrero, professor do curso de Biodiversidade da Universidade de Concepción e um dos principais especialistas em cactos do Chile, o problema é cada vez mais sério e pode levar à extinção de diversas espécies.
"Naturalmente, as cactáceas são muito suscetíveis ao dano que pode ser provocado pelo ser humano, têm distribuições muito limitadas na natureza ou são pouco abundantes. Além disso, as espécies mais ameaçadas são as mais apreciadas pelos colecionadores ilegais que procuram ter plantas mais exclusivas", explica ele.
Segundo o professor, acabar com a presença dos cactos na natureza pode prejudicar o ecossistema de um local árido com o deserto do Atacama não apenas pela perda das plantas, mas porque na natureza elas também têm o chamado "efeito enfermeira" e ajudam diversos outros organismos a sobreviver no habitat.
"A perda da população de cactáceas se tem um efeito maior sobre o deserto, onde a cobertura vegetal é naturalmente baixa. Isso pode afetar severamente o ecossistema, incluindo outras plantas e animais. Os cactos têm um efeito "enfermeira" que permite que outras plantas se estabeleçam, e são refúgio para animais que as utilizam como fonte de alimento (néctar, pólen, etc) e abrigo. A maioria dos cactos do deserto do Atacama são plantas longevas e estabelecem relações duradouras com as espécies de seu retorno", detalha.
Para Guerrero, a ampliação desse problema em anos recentes está ligada à expansão da internet. As redes sociais ajudaram a propagar o tráfico mundialmente, porque facilitam a conexão entre quem extrai e trafica a planta e colecionadores interessados em espécies exóticas, além de ocultar toda a operação.
"A internet e, especificamente, redes sociais como o Instagram facilitam o tráfico de espécies porque dão visibilidade e colocam os produtos "ilegais" vendidos por um fornecedor facilmente em contato com centenas ou milhares de possíveis compradores, mantendo todas as etapas da transação no anonimato. Muitas vezes o comprador nem mesmo sabe da origem ilegal porque ela é oculta pelo vendedor", avalia.
A preservação dessas espécies, segundo ele, passa por uma ampliação das áreas protegidas e tomar medidas que reduzam a extração ilegal não apenas punindo os traficantes, mas auxiliando e envolvendo as populações locals. "É importante criar uma rede colaborativa de diferentes setores da sociedade, onde as comunidades locais estejam envolvidas na proteção de seu patrimônio".
O biólogo também conta que as plantas apreendidas na Itália ano passado ainda não foram devolvidas à natureza no Chile. Ainda estão em quarentena no Serviço Agrícola do país, para garantir que elas não trarão nenhuma doença ao ecossistema. Por conta das condições de armazenamento, no entanto, ainda menos cactos podem chegar ao meio ambiente.
"Elas chegaram em más condições, são plantas que foram arrancadas há mais de um ano de seu habitat natural. Em todo o processo, elas deixaram de ter as condições adequadas necessárias para se manterem saudáveis. Pouca exposição ao sol, excesso de irrigação e o uso de substrato inadequado danificam severamente o estado delas. Existe muita preocupação sobre o estado das plantas, a quarentena também mantém as plantas em condições longe do ideal. É muito provável que muitas delas morram durante essa etapa", alerta Guerrero.