O jornal Apple Daily, de Hong Kong, que vem resistindo ao endurecimento da censura imposta pelo governo chinês a ativistas e imprensa, foi invadido por forças policiais na manhã desta quinta-feira (17/6). O editor-chefe e quatro executivos foram presos sob acusação de violarem a lei de segurança nacional do território. Computadores e anotações de repórteres foram examinados e apreendidos, e ativos do jornal foram congelados.
O jornal é de propriedade de Jimmy Lai, principal empresário de mídia de Hong Kong, de 73 anos, com patrimônio estimado em US$ 1 bilhão, que está cumprindo uma sentença de 14 meses de prisão desde 16 de abril por “assembleias não autorizadas” durante os protestos pró-democracia de 2019.
O jornal transmitiu ao vivo a operação policial em suas mídias sociais.
Segundo divulgou o Apple Daily no Twitter, o CEO Cheung Kim-hung, o COO Royston Chow, o editor-chefe Ryan Law, o editor associado Chan Pui-man e o diretor da plataforma do Apple Daily Digital, Cheung Chi-wai, foram levados por policiais, sob acusação de violar o Artigo 29 da lei de segurança nacional imposta por Pequim, que proíbe “conluio com um país estrangeiro ou com elementos externos para pôr em perigo a segurança nacional”.
O jornal relatou que por volta das 7h30 de quinta-feira, centenas de policiais invadiram a sede, bloqueando todas as entradas. Os funcionários foram obrigados a registrarem-se com RG e dados pessoais antes de serem autorizados a entrar. Só podiam entrar na cantina e eram impedidos de ir a outras áreas da redação. Os jornalistas não foram autorizados a regressar às suas mesas e foram impedidos de filmar ou transmitir ao vivo a operação.
Em uma coletiva de imprensa na manhã de quinta-feira, Steve Li, superintendente sênior da unidade de segurança nacional, disse que as autoridades congelaram HK $ 18 milhões (US $ 2,32 milhões) em ativos pertencentes à Apple Daily Limited, Apple Daily Printing Limited e AD Internet Company .
Li acusou o jornal de publicar mais de 30 artigos, tanto online quanto impressos e em chinês e inglês, que buscavam sanções estrangeiras. “Os artigos questionáveis desempenham um papel crucial na conspiração”, disse Li.
John Lee, Secretário de Segurança, acusou o Apple Daily de usar “o jornalismo como uma ferramenta para colocar em risco a segurança nacional” e um “guarda-chuva” para se proteger. Ele disse que a polícia está investigando ativamente se pessoas dentro ou fora do Apple Daily participaram ou instigaram atos que colocam em risco a lei de segurança nacional.
Lee evitou perguntas repetidas sobre se os artigos são reportagens ou artigos de opinião. Ele ressaltou que a operação não tem como alvo a imprensa em geral e pediu aos” jornalistas normais” que “mantenham distância dos criminosos”.
A Associação de Jornalistas de Hong Kong expressou preocupação com a operação e a prisão. “Na transmissão ao vivo da operação, policiais foram vistos ligando os computadores nas mesas dos repórteres, disse o presidente Chris Yeung.
Ele disse que não conseguia entender porque o jornalismo violaria a lei de segurança nacional e questionou os objetivos da apreensão de materiais jornalísticos. O mandado de busca e apreensão de materiais jornalísticos mostra que a liberdade de imprensa está seriamente comprometida pela lei de segurança nacional. “Não há proteção zero para as notícias”, ele rebateu, segundo o Apple Daily reportou.
A repressão que está sufocando o Apple Daily é consequência da reação da China aos protestos pró-democracia que começaram em 2019, estimulados pelo aperto cada vez maior de Pequim sobre as amplas liberdades prometidas a Hong Kong após seu retorno ao domínio chinês em 1997.
A cidade portuária foi colônia britânica por 150 anos e virou um importante centro financeiro e de negócios. Um acordo entre a China e o Reino Unido devolveu Hong Kong ao controle chinês, prevendo uma administração sob o modelo “um país, dois sistemas”, em que o regime comunista não seria estendido ao território.
Mas, gradativamente, a China passou a adotar iniciativas para limitar críticas, gerando uma onda de protestos que explodiu em 2019, com a população tomando as ruas da cidade. A repressão foi severa, e em 2020 entrou em vigor a nova Lei de Segurança Nacional, com penas severas até de prisão perpétua para crimes como secessão, subversão, terrorismo ou conluio com forças estrangeiras.
O motivo alegado para a invasão desta quinta-feira foi a cobertura do Apple Daily sobre as relações entre a China e Hong Kong e o pedido de sanções ocidentais. Em uma entrevista coletiva, Li Kwai-wah, chefe da força policial, declarou ter “fortes evidências de que os artigos questionáveis desempenham um papel crucial na conspiração, que fornece munição para países estrangeiros”.
O grupo Next Digital, que além do Apple Daily de Hong Kong tem outro jornal de mesmo nome em Taiwan e diversos negócios em mídia, virou um dos principais alvos da repressão chinesa sobre os que querem a manutenção da democracia em Hong Kong.
Em 14 de maio, o gabinete de segurança da cidade havia anunciado o congelamento das ações de Jimmy Lai no grupo, bem como ativos nas contas bancárias locais de três empresas pertencentes a ele. O magnata da mídia detém atualmente 71,26 por cento das ações da Next Digital, avaliadas em mais de US$ 44 milhões.
A medida tinha o objetivo de evitar que “bens relacionados ao crime” fossem removidos de Hong Kong, disse o departamento de segurança em um comunicado. O congelamento pode ter dificultado o envio de recursos para o jornal do grupo em Taiwan, levando à decisão de suspender o impresso, com a demissão de mais de 300 profissionais. O diretor de redação, Chang Ye-Shing, renunciou ao cargo.
Jimmy Lai criou a empresa em 1995, quando lançou o Apple Daily Hong Kong, em chinês e inglês, tornando-se uma das principais vozes a favor da democracia local. A condenação do empresário, junto com ativistas contrários ao governo de Hong Kong controlado pela China, gerou críticas de governos ocidentais e de grupos de direitos humanos.
“A condenação injusta desses ativistas sublinha a intenção do governo de eliminar toda a oposição política”, disse a diretora da Anistia Internacional para a Ásia, Yamini Mishra.
A organização Repórteres sem Fronteiras também protestou, pedindo libertação imediata de Lai e o fim do assédio judicial contra ele. O empresário foi premiado com o 2020 RSF Press Freedom Awards (Prêmio de Liberdade de Imprensa).
“Um ano e dois meses de prisão por participar de dois protestos pacíficos é uma punição totalmente desproporcional que revela como o governo está desesperado para silenciar Jimmy Lai, um símbolo da liberdade de imprensa em Hong Kong ”, disse Cédric Alviani, chefe da RSF no Leste Asiático.
Segundo a organização, a condenação é parte de uma campanha de assédio judicial de longa duração contra Lai, que está detido desde dezembro de 2020. O empresário enfrenta seis outros processos por fraude, conspiração para perverter o curso da Justiça e por conspirar com forças estrangeiras, correndo o risco de prisão perpétua à luz da nova Lei de Segurança Nacional.
Lai tinha trânsito livre em Washington, tendo se encontrado com autoridades como o ex-secretário de Estado Mike Pompeo, para angariar apoio ao movimento pela democracia de Hong Kong, levando Pequim a rotulá-lo de “traidor”.
Em 12 de abril, em uma carta escrita em sua cela de prisão, ele pediu os funcionários do Apple Daily para “se manterem firmes”: “É nossa responsabilidade como jornalistas buscar a justiça. Contanto que não estejamos cegos por tentações injustas, contanto que não permitamos que o mal passe por nós, estaremos cumprindo nossa responsabilidade. ”
Hong Kong, que segundo a RSF já foi um bastião da liberdade de imprensa, caiu do 18º lugar em 2002 para o 80º lugar no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da organização. A República Popular da China, por sua vez, estagnou em 177º de 180º.