A entrada no ar de um novo canal de TV no Reino Unido tem o potencial de causar impacto no ecossistema da mídia e também mexer com as estruturas políticas do país. Isso porque a GB News (Britain’s News Channel), que começou a transmitir sua programação às 20h deste domingo (13/6) é a reação do grupo alinhado ao Partido Conservador para desafiar os canais existentes, principalmente a BBC e a Sky News.
Tem uma abordagem fortemente nacionalista e se posiciona contra o comportamento chamado “politicamente correto”, o que a fez ganhar o apelido de “Fox News” britânica. Embora jornalistas e líderes do projeto combatam o apelido, logo nas primeiras horas de transmissão ficou patente o estilo combativo, nervoso e engajado, batendo sobretudo no isolamento social que virou o pesadelo do primeiro-ministro Boris Johnson, que nesta segunda-feira deve adiar mais uma vez abertura total do país prevista para 21 de junho.
A entrada no ar foi marcada também por gafes e por problemas técnicos, como falta de sincronia entre fala e imagem, microfones que não funcionaram e falhas na entrada de convidados, provocando comentários negativos nas redes sociais.
A emissora pertence à holding All Perspectives, fundada em setembro de 2019 pelos executivos de mídia Andrew Cole e Mark Schneider, ambos com associações anteriores à empresa proprietária da Virgin Media, Liberty Global, que é dirigida por John Malone, dono do Discovery e um dos principais acionistas do canal.
Outros investidores são o grupo de investimentos Legatum, com sede em Dubai, e Paul Marshall, um dos criadores do fundo de hedge Marshall Wace, que foi um doador para a campanha a favor da saída do Reino Unido da União Europeia.
Em janeiro de 2020, a empresa recebeu uma licença do órgão regulador de telecomunicações para operar o canal. O investimento anunciado foi de £ 60 milhões, com a previsão de contratar 12o jornalistas e transmitir 6,5 mil horas de programação por ano, incluindo noticiário, opinião e debates.
No comando editorial do está Andrew Neil, um veterano do jornalismo político da BBC, onde passou 25 anos, e de onde saiu em 2020 depois que seu programa foi cancelado. Ele tem sido a voz pública da GB News.
Em um comunicado, Neil disse que o canal “defenderia um debate robusto e equilibrado e uma gama de perspectivas sobre as questões que afetam a todos no Reino Unido, não apenas aqueles que vivem na área de Londres “. E que a GB News preencheria uma lacuna do mercado para “o grande número de britânicos que se sentem mal atendidos e ignorados pela mídia”.
A rede inaugurou com um elenco de estrelas, incluindo um famoso apresentador do noticiário da tarde da BBC News, Simon McCoy, que deixou a emissora pública para se unir ao projeto. Tem também um canal de notícias na internet, com artigos escritos.
A trasmissão é pela TV aberta e pelas plataformas digitais. Neil disse que a GB News buscaria construir um modelo de assinatura paga para sua oferta digital e “formar um clube digital” no futuro, mas quer primeiro construir audiência.
Pelo estilo contra o politicamente correto prometido (o que significa abrir espaço para visões nem sempre alinhadas a opiniões mais progressistas sobre temas sociais como racismo, feminismo e meio ambiente) e pelo fato de ser endossada pelos apoioadores do primeiro-ministro Boris Johnson e por setores do partido ainda mais radicais do que ele em certas posições, a GB News foi comparada à americana Fox News desde que o projeto foi anunciado.
A emissora americana notabilizou-se pela defesa incondicional do ex-presidente Donald Trump, abrigando comentaristas e colunistas da extrema-direita e envolvendo-se em controvérias, como a validação da tese de que as eleições de 2020 teriam sido fraudadas. A rede está sendo processada em uma causa de US$ 43 bilhões por dois fornecedores de sistemas para o pleito.
O impacto da GB News no jornalismo e na política britânicas pode ser grande. Ela vai bater de frente com a BBC, que entrou na linha de tiro de Boris Johnson sobretudo no período da campanha eleitoral de 2019. Ele criticou abertamente a cobertura da emissora e iniciou um movimento para minar sua principal fonte de receita, a taxa obrigatória paga pelas residências britânicas, sobretudo depois do escândalo envolvendo a entrevista histórica da princesa Diana.
Outra crítica forte ao modelo atual da BBC é de que sua cobertura seria centrada em Londres e no Palácio de Westminster, sede do Parlamento, sem olhar para a realidade de outras regiões do país. E que teria um viés esquerdista e contra o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia.
O Brexit está na verdade no centro de tudo. Foi a partir dele que as divisões políticas se intensificaram no país. O plebiscito de 2016 teve um resultado apertado a favor da saída.
O ano de 2019 foi turbulento, com pressões para um novo plebiscito, que acabou não acontecendo. A então primeira-ministra Theresa May deixou o cargo, desgastada pela dificuldade em negociar um acordo com a União Europeia validado pelo Parlamento.
Boris Johnson assumiu o governo, como líder do Partido Conservador, e em dezembro daquele ano foi oficialmente eleito para o cargo. Nesse período, o nacionalismo exacerbou-se no país. Grupos radicais faziam atos e passeatas defendendo o Brexit sob a ótica da soberania, e indo contra imigrantes e minorias.
Foi nesse contexto, em setembro de 2019, que a holding da GB News foi formada, quando Johnson já era Primeiro-Ministro e convocou eleições gerais para ampliar a maioria no Parlamento, o que conseguiu. A rede encaixa-se como luva no projeto político do Partido Conservador, permitindo levar suas mensagens ao público sem as críticas da emissora privada Sky News ou a suposta imparcialidade da BBC.
Por ser uma emissora pública, ela legalmente não pode assumir posições políticas, nem para um lado nem para o outro. Mas Boris Johnson e seus aliados achem que ela toma posição contrária.
Mas a julgar pelas primeiras horas de transmissão, Johnson não pode contar com sua simpatia irrestrita. O tema principal em pauta na noite de domingo e ao longo do dia de segunda-feira é o isolamento social. O primeiro-ministro anuncia às 18h que medidas previstas para serem encerradas no dia 21 de junho permanecerão, diante do aumento de casos da variante indiana da Covid-19.
Há uma divisão na sociedade sobre isso, mas o empresariado é contra, pois contava que a economia voltaria a abrir. Aos empresários se juntaram parlamentares mais linha-dura, da ala do Partido Conservador que vem se batendo pelo fim do isolamento há tempos – alguns acham que ele nunca deveria ter acontecido.
Este é o discurso principal dos apresentadores da GB News e dos convidados a debater nos programas. Nesse caso, parece que o feitiço pode virar contra o feiticeiro, pois as críticas ao primeiro-ministro são duras e vieram supostamente de seus amigos.
Ao apresentar-se dizendo “temos orgulho de ser o canal de notícias do Reino Unido”, usar a bandeira do país em sua logomarca e o nome GB (de Great Britain) em seu nome, a nova rede não esconde a que veio.
O olhar para fora de Londres também fica evidente na carta de princípios, que diz:
Abordamos as questões que importam em toda a Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, não apenas nos centros metropolitanos do país.
Queremos dar voz à verdadeira Grã-Bretanha, mostrar a engenhosidade e inovação de nossas diversas comunidades, celebrar o que é inspirador e destacar as questões preocupantes de nosso país.
A intenção de abordar todos os temas, mesmo os controversos, dando espaço para opiniões nem sempre alinhadas com o politicamente correto é outro princípio princípio exposto na carta editorial:
Não nos esquivamos de questões controversas.
Mas talvez já em resposta a reações negativas ao seu estilo e à comparação com a Fox News, a carta editorial promete cuidado:
Valorizamos a liberdade de expressão, mas não causando ofensas injustificáveis ​​ou expondo nosso público a danos, especialmente nossos telespectadores vulneráveis.
Faremos uma análise franca e honesta do mundo, mas somos sensíveis a assuntos complexos e protegemos a privacidade, a menos que um interesse público convincente supere essa expectativa.
Em uma apresentação no seminário Future of News (Futuro do Jornalismo) do jornal Financial Times, Andrew Neil foi perguntado sobre se a intenção do canal era jogar lenha na fogueira da “guerra cultural”. Respondeu que “na verdade o fogo foi atiçado pelos guerreiros “woke” (politicamente corretos); que em geral a ‘mídia oficial’está do lado deles e que por isso a GB News iria fazer o contraponto, dando voz a outros pontos de vista.
Questionado sobre a qual mídia oficial ele se referia, disse: “A BBC, o Financial Times [que é um jornal privado], toda a sua cobertura é muito simpática aos guerreiros politicamente corretos e nunca os contradiz. Nós vamos fazê-lo”.
Para ele, a cultura do cancelamento que atingiu pessoas como a escritora JK Rowling (autora de Harry Potter que se envolveu em uma controvérsia ao expressar sua opinião sobre pessoas trans) faz com que “vozes perfeitamente legítimas sejam silenciadas”:
É uma virada total do Iluminismo, remontando ao século XVIII. Isso é sério.
Pelas regras de radiodifusão do Reino Unido, emissoras de notícias não podem pertencer a partidos políticos (por esta razão o órgão regulador, Ofcom, cancelou em fevereiro a licença da chinesa estatal CCGN), nem indicar formalmente apoio a uma corrente. Os jornais do país podem fazer isso, e todos declaram a quem apoiam, se ao Conservador ou ao Trabalhista.
Mas não é assim que a imprensa tem tratado. Os jornais (e a BBC) têm falado do alinhamento ao Partido Conservador e a suas teses, como a defesa do Brexit. Simon McCoy, que era da BBC, declarou em uma entrevista ao Daily Telegraph dois dias antes do lançamento da GB News que “não era um jornalista esquerdista da BBC e que tinha votado pela saída do Reino Unido da União Europeia”.
O editor de mídia da BBC, Amol Rajan, disse que “não é o primeiro canal a ser criado na Grã-Bretanha com uma visão de mundo forte … Mas o GB News é o primeiro a ser criado com uma inclinação política explícita”.
A GB News contratou excelentes jornalistas e Andrew Neil certamente é um deles. Ela pode até não se equiparar à Fox News, que tem apresentadores e colunistas banidos das redes sociais por propagaram discurso de ódio e desinformação, e é bem provável que nunca chegue a tais extremos.
Mas mesmo sem pertencer a um partido, o alinhamento ao Conservador é a sua marca, ainda que não necessariamente ao pensamento do primeiro-ministro, como ficou evidente no tratamento dado à questão do isolamento social.
As implicações sobre o futuro são para a BBC, que se vê ainda mais ameaçada, já que além de todos os seus problemas ainda deve perder audiência. E para o Partido Trabalhista, que fica mais longe de voltar ao comando do país já que agora terá que lutar com uma máquina bem azeitada de informação favorável ao atual governo. Ou às teses que o partido defende, sobretudo no que diz respeito a nacionalismo, imigração e negócios.