De chips a vacinas
O professor de microeletrônica da UFRGS Sergio Bampi explica a importância da existência de ao menos um polo que pesquise e produza esse tipo de tecnologia no Brasil, lembrando que o país tem hoje vacinas contra a Covid-19 porque investiu em linhas de produção de imunizantes no Instituto Butantan e na Fundação Oswaldo Cruz por décadas.
“Investimento público na parte científica, nos recursos humanos, na linha de produção. Um investimento estratégico que dá ao país, sobretudo neste contexto de pandemia, condições de responder”, explica o docente, que também atuou na Ceitec, mas antes da federalização, em 2008, quando ela era ligada à universidade e a outros entes públicos e privados.
Bampi afirma que, num mercado mundial de US$ 460 bilhões por ano, a importância da Ceitec não pode ser medida apenas pelo fator econômico. “Como produtor, a empresa tem uma expressão muito pequena, mas, como um laboratório, tem potencial muito grande para beneficiar o ecossistema de inovação. Nós temos que fazer inovação no Brasil”, frisa.
Para o professor, o governo erra ao abrir mão desse potencial. “Isso está dentro do contexto de desmonte da capacidade tecnológica e científica que existe dentro do Brasil. E que tá sendo desmontado pela equipe da Economia, porque no ano que vem o idiota do Guedes precisa mostrar uma bandeira para a sociedade: eu acabei com tantas estatais. Ele vê a Ceitec como mais um número”, critica Bampi.
O docente critica ainda o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Quer chegar na eleição dizendo que tirou empresas das costas do Estado, das costas dos empresários, abrindo espaço para a iniciativa privada. Mas o empresariado brasileiro não quer investir em um mercado como esse, que é de risco, o empresariado quer se beneficiar da segurança que o Estado dá enquanto critica o tamanho dele. Sem a Ceitec, vamos ficar sem investimento público e sem investimento privado num setor fundamental”, conclui.
A Ceitec e o mercado
A empresa que está sendo extinta pelo governo é uma das oito no mundo com capacidade e certificação para fabricar o chip que vem nos passaportes (mas que a Casa da Moeda não compra, priorizando fornecedores estrangeiros).
A estatal também é a única empresa da América Latina que cobre toda a escala de produção de chips com silício, e já produziu mais de 100 milhões de unidades. Além de fornecer para o mercado, a empresa tem um setor de pesquisa e havia desenvolvido equipamento capaz de testar para a Covid-19.
Foi a primeira empresa que teve chips registrados como desenvolvidos no país e tinha em seu corpo técnico 11% dos funcionários com doutorado ou pós-doutorado e 31% com mestrado.
A Ceitec é ainda fornecedora de outras empresas do setor tecnológico, que agora terão de buscar os produtos no mercado internacional.
Esse mercado está cada vez mais concorrido. Neste mês, duas fábricas da Volkswagen, no Paraná e em São Paulo, interromperam temporariamente suas operações por falta de insumos tecnológicos.
Em nota enviada ao Metrópoles, a montadora informou que “uma escassez significativa de capacidades de semicondutores está levando a vários gargalos de fornecimento em muitas indústrias globalmente”.
E isso ainda teria gerado problemas no abastecimento da indústria automotiva ao redor do mundo. “O resultado são adaptações em toda a indústria na produção de automóveis, o que também afeta as marcas do Grupo Volkswagen”, diz a empresa.
De acordo com o presidente da Associação dos Colaboradores da Ceitec (Acceitec), Silvio Luís Santos Júnior, a empresa poderia se beneficiar nos próximos anos desse cenário de escassez, aumentando a participação do Brasil em um setor no qual todo o nosso continente sofre para acompanhar países que investem muito mais em tecnologia, como a Coreia do Sul.
“Estamos perdendo, junto com a empresa, uma política de Estado, cuja história vem desde a década de 1970, ainda com os militares, que teve um incentivo para a vinda de indústrias de semicondutores nos anos 1980, que recebeu alto investimento do país nessas décadas na formação de recursos humanos. E agora é colocado um ponto final dessa maneira”, lamenta Silvio Luís, que lidera os esforços para tentar reverter a liquidação em instâncias, como o TCU.
Para o funcionário da empresa e sindicalista, a decisão pela extinção terá consequências duradouras para o setor. “O recado é: o Brasil, que formou profissionais muito qualificados, não incentiva a indústria nacional a absorvê-los. Não é aqui que vai se desenvolver tecnologia. Está se dizendo para essas pessoas, que nós formamos, irem morar fora sem produzir nada para o nosso país”.
O legado incerto
Órgão responsável pela Ceitec, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação tem a incumbência de criar soluções para o legado da empresa após o seu fim, dando destino a seu patrimônio físico. Também atua para encontrar posições em outras instituições tecnológicas ligadas ao governo para ao menos parte dos profissionais dispensados. Procurada, porém, a pasta não forneceu mais informações sobre esse processo, que deve envolver a criação de uma organização social para cuidar desse legado.
Ceitec em vídeo
Entenda melhor o trabalho de produção de chips realizado pela Ceitec neste vídeo produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em 2017, para divulgar a empresa e explicar sua importância estratégica para o país (na época).