Mais de 230 intelectuais judeus brasileiros assinaram na semana passada uma carta aberta em que afirmam que chegou a hora de "chamar as coisas pelo nome", declarando que o governo de Jair Bolsonaro "tem fortes inclinações nazistas e fascistas".
"É preciso chamar as coisas pelo nome. É chegada a hora de nós, intelectuais, livres-pensadores, judeus e judias progressistas, descendentes das maiores vítimas do regime nazista, posicionarmos, como atores sociais diante do debate público sobre o atual momento nacional. É perceptível que o governo encabeçado por Jair Bolsonaro tem fortes inclinações nazistas e fascistas [...]. O Fora Bolsonaro deve ser o chamado uníssono da hora. É o chamado contra o genocídio", lê-se no documento.
O manifesto é assinado, entre outros, pelos historiadores Lilia Schwarcz e Michel Ghermen, a cientista Natalia Pasternak e Lucia Chermont, doutoranda em história social pela Universidade Estadual de São Paulo em Franca (UNESP-FRANCA).
Chermont conversou com Sputnik Brasil sobre as motivações que levaram à formulação da carta e a polarização dentro da comunidade judaica brasileira diante do governo Bolsonaro.
A carta surge após a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro publicar uma nota de repúdio assinada pelo presidente da instituição, Alberto David Klein, afirmando que o historiador Michel Gherman banaliza o Holocausto e fortalece o antissemitismo ao dizer que bolsonarista deve ser tratado como nazista ou fascista.
Chermont comenta que a ideia da carta surge após a divulgação da nota de repúdio, "querendo cancelar [Gherman], fazendo uma humilhação pública a um intelectual de esquerda".
"Existem muitas pessoas que endossam essa postura [do Gherman]. Ele é um porta-voz, mas por trás dele tem um grande número de judeus, de descendentes de sobreviventes do Holocausto, que pensam a mesma coisa."
A doutoranda em história social comenta que Bolsonaro não apoia Israel, mas possui um vínculo ideológico e partidário com o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu.
"Isso não quer dizer que ele apoia Israel, ainda mais porque o que o Bolsonaro vê é muito próximo do que os evangélicos veem: um Israel bíblico. Não é o Israel onde o aborto está legalizado desde a década de 1970, não é o Israel onde os restaurantes veganos são numericamente expressivos, onde a comunidade LGBT tem uma liberdade e são aceitos", afirma Chermont.
Para Chermont, Bolsonaro vende para apoiadores a ideia de um Israel belicoso, com um nacionalismo fervoroso e um fanatismo religioso, mas "Israel é muito mais do que isso".
O forte teor da carta aberta é sublinhado por Chermont, que afirma que denunciar as "posturas antidemocráticas" e atitudes contra as minorias do presidente do Brasil é também uma luta antissemita.
"A questão totalitária não é só contra o judeu. A frase 'nunca mais com ninguém', não quer dizer só contra o judeu, ainda mais porque existem algumas correntes que dizem que no Brasil o judeu é branco. E aqui o preconceito forte é contra o negro. Você lutar contra o preconceito contra o negro é uma forma de você lutar contra o antissemitismo também", garante a doutoranda.
Ela cita o historiador das ideias Michael Löwy para afirmar que o fascismo de Bolsonaro não é o mesmo dos anos 1930, "é um novo fascismo", com características próprias.
Muitos estados brasileiros possuem uma federação israelita. Chermont afirma que os diretores e os presidentes dessas federações normalmente são empresários, pessoas que patrocinam a comunidade. E muitas vezes podem ter um viés que não representa todo o grupo.
"Tem gestões mais conservadoras, [outras] menos conservadoras. A Federação [Israelita] do Rio de Janeiro tem, de uma forma quase que permanente, tido uma postura bastante agressiva com qualquer pessoa que se opõe ao governo Bolsonaro", comenta a doutoranda.
Chermont espera que com a repercussão que a carta aberta está recebendo, novas pontes surjam. "A minha esperança é de um diálogo. A comunidade judaica não é tão numericamente expressiva. Deveria haver espaço para o entendimento", conclui.