Ao olharmos para história mundial, conflitos e guerras sempre foram cenários que acompanharam a caminhada do homem na terra, até os dias de hoje. Na luta por seu próprio território, muitas nações ainda batalham para ter seus Estados reconhecidos.
Um dos casos mais emblemáticos dessa luta se encontra na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, onde palestinos confrontam, há muitos anos, com israelenses, para terem o direito a um Estado oficializado. Diante desse cenário, a Palestina conta com uma estrutura socioeconômica bem mais precária do que a de Israel.
Essas circunstâncias não ficaram diferentes com a chegada da pandemia da COVID-19. Em relação às campanhas de vacinação, o Estado judeu se destacou, contanto atualmente com mais de 90% de seus cidadãos acima dos 50 anos vacinados. Mas como ficou a vacinação para os palestinos? Em que dimensão a atuação israelense interfere nesse quadro?
A Sputnik Brasil ouviu Isabela Agostinelli, doutoranda em Relações Internacionais pela PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP (GECI PUC) para entender o atual contexto da pandemia e das campanhas de imunização na Palestina.
Segundo Agostinelli, o fosso entre a vacinação israelense e palestina é grande, e esse processo acontece por conjunturas políticas instaladas muito antes do começo da pandemia, as quais o Estado israelense não abriu mão mesmo diante do contexto excepcional de saúde mundial.
O governo israelense alega que na Faixa de Gaza e em certas áreas da Cisjordânia há governos autônomos (Hamas e Autoridade Palestina, respectivamente), portanto, a responsabilidade pela vacinação seria desses grupos políticos.
Porém, tanto a Cisjordânia, quanto Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza vivem sob ocupação militar israelense. De acordo com a especialista, em termos de espaço, população e recursos, Israel segue sendo aquele que detém o controle sobre essas variáveis nos diferentes territórios palestinos.
"O argumento de que os Acordos de Oslo (1993) determinam que a Autoridade Palestina é inteiramente responsável pela vida dos palestinos cai por terra quando reconhecemos que, em primeiro lugar, o processo de paz foi uma farsa, em segundo lugar, o que ele significou na verdade foi a continuação, ou até mesmo o fortalecimento, da ocupação israelense da Palestina", explica Agostinelli.
De acordo com a Quarta Convenção de Genebra, o poder ocupante (no caso, Israel) tem responsabilidade sobre os serviços de saúde para a população ocupada (os palestinos), mas ao observamos a porcentagem de pessoas vacinadas, fica claro o contraste nos índices de vacinação.
Segundo dados do Our World in Data, 541 mil palestinos foram vacinados, sendo que destes, apenas 223 mil receberam a segunda dose, correspondendo a 4,8% de sua população. Já em Israel, 10,6 milhões de pessoas foram vacinadas, sendo que 5,3 milhões receberam a segunda dose, o que equivale a 56,7% da população.
"Tanto Hamas quanto a Autoridade Palestina possuem recursos muito limitados para conduzir uma campanha de vacinação eficiente para os palestinos, muito por conta da realidade material de ocupação israelense da Palestina. Em março, por exemplo, Israel bloqueou a entrada de 1.000 doses da vacina russa Sputnik em Gaza por dois dias", conta Agostinelli.
Agostinelli argumenta que obstáculos israelenses no combate à pandemia não são necessariamente novos, pois muitos giram em torno dos pontos mencionados acima, porém, ações do Estado judeu mais recentes adicionaram à escalada de dificuldade para vacinação palestina.
De acordo com a especialista, Israel bombardeou o único laboratório de testagem da COVID-19 na Faixa de Gaza, região que sofre com o bloqueio israelense e egípcio desde 2007. Por conta do bloqueio, a entrada de medicamentos é bem limitada, o que prejudica logisticamente os esforços de vacinação.
O sistema de saúde de Gaza, que já era precário, ficou ainda mais carregado depois que os ataques deixaram mais de 250 palestinos mortos e cerca de 2.000 feridos. O tratamento dessas pessoas nos hospitais se soma as que precisam ser tratadas por infecções do coronavírus, portanto, a sobrecarga no sistema de saúde chegou a um ponto crítico.
Segundo a especialista, após o último conflito, o foco internacional se voltou novamente para região, e diversos grupos e organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a B’Tselem, a Gisha, entre outras pressionaram para que Tel Aviv ajudasse na campanha de vacinação para os palestinos.
Porém, Agostinelli não viu muito efeito dessa pressão, já que Israel prometeu doar vacinas para países que diziam reconhecer a soberania israelense sobre Jerusalém como Honduras, Guatemala, Hungria e República Tcheca, ao invés de direcionar os lotes de imunização para Gaza e Cisjordânia.
"Os resultados [dessa pressão], ainda não se mostraram vantajosos para os palestinos, que continuam vivenciando o apartheid em diversas dimensões, inclusive o apartheid médico", disse a especialista.
Portanto, na visão de Agostinelli, em relação ao combate à pandemia, pouco foi feito após o conflito. "Por ser uma característica estrutural do colonialismo israelense na Palestina, a discriminação e o apartheid, materializado também no setor da saúde, continua presente no cotidiano dos palestinos", explica.
Na segunda-feira (31), a Palestina aprovou o uso da vacina russa Sputnik Light, mas de acordo com a especialista, ainda é cedo para dizer como vai ser feita a logística da distribuição a partir do momento que as fronteiras são controladas por Israel e Egito, e assim, tende a ser um grande obstáculo para a entrada das vacinas.
"Além disso, como mencionei anteriormente, o sistema de saúde já é precário, tanto por conta da violência infraestrutural como por conta do grande número de feridos nos últimos ataques militares que inflou os hospitais", diz a especialista que acredita que a distribuição da vacina ocorra de forma deficiente.
Recentes mudanças no panorama político aconteceram no dia de hoje (2), com líderes da oposição anunciando acordo para derrubar o atual primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que há 12 anos está no poder, e declara publicamente o direito israelense de continuar sua campanha de assentamento em território palestino.
Enquanto o pensamento político de Tel Aviv permanecer pautado no direito a esses territórios, o acesso dos palestinos à saúde e à infraestrutura de qualidade ficará dificultado, assim como o acesso à vacinação para combater a COVID-19.