Ao prestar depoimento como convidada à CPI da Pandemia, a oncologista e imunologista Nise Hitomi Yamaguchi defendeu, nesta terça-feira (1), o uso da cloroquina como integrante do tratamento inicial contra a covid-19, a autonomia dos profissionais de saúde para prescrever e a independência dos pacientes, mas negou que tenha tentado alterar a bula do remédio ou tenha participado de reunião com esse objetivo. Nise também negou que participar de um "conselho paralelo" que formule políticas públicas, mas reconheceu ter trabalhado como "voluntária" com um "grupo de médicos" junto ao governo Bolsonaro.
Insatisfeito com o depoimento, o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), já avisou que será necessário fazer uma acareação com o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta ou com o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.
Mandetta havia relatado aos parlamentares que participou de uma reunião no Palácio do Planalto, em abril do ano passado, quando viu um papel não timbrado que seria a minuta de um decreto presidencial para alterar a bula de modo a indicar o medicamento contra a covid-19. Dias depois, o chefe da Anvisa, Antonio Barra Torres, confirmou a reunião e disse que Nise Yamaguchi parecia estar “mobilizada com essa possibilidade”.
Pressionada várias vezes pelo relator, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), e por outros senadores, ela negou e disse que a reunião foi para tratar da Resolução 348, da Anvisa, sobre "novas indicações terapêuticas e insumos estratégicos".
Alertada pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) de que, ao negar o fato, ela poderia estar incriminando as duas testemunhas que lhe antecederam, ela disse que Barra Torres e Mandetta podem ter se enganado.
— Acho que se equivocaram. Acharam que queríamos mudar a bula. Mas não foi isso que ocorreu [...] Fui convidada para uma reunião oficial e nessa situação não houve minuta de bula. Nem discuti isso. Não existiu nem ideia de mudança de bula por minuta ou decreto [...] Sou especialista em regulação, isso não existe — afirmou a médica, que entregou a comissão o documento, que, segundo ela, não trata de alteração de bula, mas de disponibilização de medicamentos.
Nise Yamaguchi apresentou aos parlamentares uma troca de mensagens via WhatsApp entre ela e o médico Luciano Azevedo, também defensor do "tratamento precoce", discutindo a oferta de medicamentos, como a cloroquina, na rede pública de saúde. As conversas foram registradas por ela em cartório.
O depoimento foi marcado por interrupções e discussões entre os parlamentares. Depois de alguns vídeos exibidos pelo relator sobre temas diversos, oposicionistas alegaram que a médica não respondia a questões e a interromperam por várias vezes, o que provocou protestos da senadora Leila Barros (PSB-DF), que pediu respeito à testemunha.
— Eu queria pedir aos senhores, com todo o respeito... Vocês sabem o lado em que eu estou, da ciência, mas o que a gente percebe é que existe uma ansiedade muito grande pelas respostas. Ela não consegue completar um raciocínio sequer e não pode se explicar — reclamou Leila.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) apresentou uma questão de ordem para que a reunião fosse encerrada e a médica retornasse posteriormente à CPI na condição de convocada. Omar Aziz, cogitou a possibilidade, mas desistiu da ideia.
O governista Marcos Rogério (DEM-RO) afirmou que não cabe a quem não possui conhecimento técnico questionar as opiniões de uma cientista com mais de 40 anos de trabalho prestado, de respeito da sociedade. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), no entanto, afirmou ela estava desinformando a população quando disse, em vídeo exibido à comissão, que não poderia haver vacinação aleatória da população.
Ao expor que tinha a versão completa do vídeo, Marcos Rogério disse que a médica nada disse contra as vacinas durante a gravação, somente alertou, na época, para o risco de precipitações e de distribuição de vacinas indiscriminadamente sem todos os protocolos científicos.
Depois de fazer uma série de perguntas técnicas sobre a pandemia e sem obter respostas objetivas, o senador Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico, disse que Nise Yamaguchi jamais poderia tratar do assunto por não ter conhecimento científico relativo à matéria. Segundo o parlamentar, ela "jogou no escuro com um grupo de pessoas que não entendia absolutamente nada da doença e brincou com a saúde do povo brasileiro”.
O senador perguntou, por exemplo, a diferença entre um vírus e um protozoário; a que grupo pertence o coronavírus; detalhes sobre o primeiro caso do coronavírus no mundo e sobre os exames adequados para a detecção de imunidade celular.
— A senhora nem sabe quando começou a primeira manifestação do coronavírus no mundo. Não podia, de jeito nenhum, estar debatendo um assunto que não era do seu domínio. Isso não é honesto [...] Me perdoe, eu não queria nem constranger a senhora, porque eu vi logo do começo que sabia de oncologia e de imunologia, mas não tinha nada de conhecimento de infectologia. Já vi logo do começo. Estava na dúvida se eu vinha lhe questionar ou não, para não deixar a senhora, como se diz na gíria, em uma saia justa — acrescentou.
Diante do constrangimento, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) defendeu a médica e pediu que as pessoas sejam "tratadas com humanidade" pela comissão. Depois de alguns protestos, inclusive de Otto Alencar, o presidente Omar Aziz, decidiu suspender a reunião para um intervalo.
Ao longo do depoimento, a especialista defendeu reiteradamente o tratamento "rápido e prematuro" dos pacientes para impedir que a doença evolua. Ainda segundo ela, o "tratamento precoce" não compete com as vacinas. Após ouvir o senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) falar sobre o tema, Nise falou contra a "demonização" do uso de cloroquina.
— Tentar demonizar o tratamento precoce e as pessoas que o defendem é muito sério e grave. E a gente deve se levantar para defender nossa honra. O que existe é tentativa de destruição de tratamento que tem salvado vidas. Quando os senhores receberem as informações técnicas sem vieses, terão outra visão — afirmou.
O oposicionista Humberto Costa (PT-PB) lembrou que, de março de 2020 a março de 2021, foram vendidos 52 milhões de comprimidos de quatro medicamentos integrantes do chamado kit anticovid. Só de hidroxicloroquina foram vendidos 32 milhões de comprimidos. Diante desses números, segundo ele, seria esperado que houvesse menos mortes no Brasil, que tem 2,7% da população mundial e 13% dos óbitos.
— Para mim ficou evidente que ela foi voz importante para essa concepção equivocada do presidente Bolsonaro, que conduziu o Brasil para essa tragédia econômica e social — declarou.
A médica disse entender a posição do parlamentar, mas disse não ser possível ter o número exato dos beneficiados pelo "tratamento precoce".
— Esse dado não é possível de ser avaliado. Falavam-se em milhões de mortos no Brasil. Mas nós temos tido a vantagem de termos pacientes beneficiados. Eu mesma trato, e não só com cloroquina. Já tive mais de 450 casos tratados pela minha equipe. São tratamentos personalizados. Temos realmente eficácia comprovada — disse Nise.
Lembrando que o ponto a ser discutido na CPI não é a autonomia do médico, mas a formulação de políticas públicas a partir de evidências científicas de baixa qualidade ou insuficientes, Alessandro Vieira questionou Nise Yamaguchi acerca dos estudos mencionados por ela. O senador a desafiou a apresentar, entre a pilha de papeis levados pela médica à CPI, algum estudo que tenha sido passado por "revisão sistemática, com ou sem metanálise, qualificadas, feitas por instituições sérias, publicadas em revistas sérias". A médica mencionou um estudo da Henry Ford Foundation, mas não onde foi publicado.
— É inaceitável um profissional de alta qualidade rejeitar os estudos técnicos de entidades qualificadas e tentar valorizar ou divulgar estudos que foram encerrados, como é o caso do estudo da Henry Ford, por exemplo. A senhora sabe que esse estudo foi descontinuado porque ele não gerou os resultados que a senhora está dizendo. A senhora tem consciência disso? — indagou Alessandro Vieira.
Ele também rebateu acusações contra os pesquisadores da Instituto de Medicina Tropical de Manaus e da Fiocruz-Manaus, que trabalharam em estudos que demonstraram ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento à covid-19. O senador Omar Aziz, presidente da CPI, se somou ao desagravo. Médica sanitarista, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN) considerou que Nise Yamaguchi prestou um desserviço, a dar falsas esperanças à população, lembrando que a vacinação de 75% dos cidadãos daria, essa sim, a esperada imunidade contra a covid-19.