A decisão da BBC de devolver todos os prêmios – incluindo o prestigiado Bafta – recebidos em 1996 em reconhecimento à entrevista da princesa Diana ao programa Panorama e ao repórter Martin Bashir – é a menor das consequências sofridas pela rede depois da publicação do resultado da investigação que só referendou o que já se sabia: o uso de documentos forjados pelo repórter Martin Bashir para convencer a princesa a falar e o acorbertamento da fraude pela direção.
Neste sábado (22), o ex-diretor-geral da emissora na época da entrevista, Tony Hall – ou Lord Hall, pois detém o título honorífico – desligou-se do cargo de Chairman da National Gallery, um dos principais museus britânicos, para onde seguiu depois de deixar a BBC, em agosto passado. E o governo sinalizou que pretende suspender por cinco anos a taxa paga pelas residências, que financia a rede.
Hall é uma das vítimas, mas não a única, de um escândalo sem precedentes nos 100 anos de existência da emissora pública que é um patrimônio nacional e responsável em grande medida pelo soft power britânico, espalhando pelo mundo a cultura do país.
A BBC nunca viveu uma tempestade tão perfeita como a que se abate sobre ela neste momento. A ironia é que no país conhecido pelos tabloides sensacionalistas, o maior escândalo da atualidade envolvendo más práticas da imprensa veio justamente de onde menos poderia se esperar – do órgão mais sério do país, que dificilmente sairá dele como entrou.
Nesse enredo, coube a um juiz aposentado da Suprema Corte, Lord Dyson, o papel de carrasco da BBC. Ele conduziu a investigação encomendada pela própria BBC depois de que o caso voltou à pauta em 2020, por ocasião de um documentário do Channel 4 sobre os 25 anos da entrevista. Não foi uma revelação nova, pois a notícia chegou a ser publicada pelo jornal Daily Mail em 1996.
Mas o documentário desenterrou a história e motivou a nova investigação. O relatório resultante, de 127 páginas, recheado de documentos, concluiu que Bashir “enganou” para conseguir a entrevista e que a BBC “ficou aquém dos altos padrões de integridade e transparência que são sua marca registrada”. Dias antes da publicação do documento, provavelmente já antevendo as conclusões, Bashir se desligou da BBC, onde ocupava o cargo de editor de religião, do qual estava licenciado por motivo de saúde.
O momento não poderia ser pior para a BBC. O relatório de Dyson deu munição aos que querem mudanças profundas na rede, que consome anualmente £ 3,5 bilhões em dinheiro público. A investigação não apenas confirmou que um jornalista sênior usou um designer da própria emissora para falsificar os extratos bancários apresentados a Charles Spencer, irmão de Diana, para convencê-lo de que a princesa estaria sendo espionada. Além disso, o relatório classifica a primeira investigação promovida na época – que não deu em nada – como “falha e ineficaz”,
Os planos do governo de suspender a taxa e de criar um conselho de supervisão editorial externo podem prosperar diante do clamor popular e político. Jornais de sábado atribuíram a “fontes do governo” – o que no Reino Unido quer dizer uma confirmação quase oficial – a informação de que há negociações em curso para cortar ou congelar a taxa pelos próximos cinco anos.
Para complicar, o jornalismo da BBC vai ganhar um novo concorrente em algumas semanas, quando deve entrar no ar uma nova emissora, a GB News. Com o nome ufanista de Great Britain, ela tem entre seus financiadores proeminentes apoiadores do Partido Conservador e está contratando um elenco de estrelas do jornalismo do país.
A notícia anunciada na manhã de sexta-feira (21/5) de que a Scotland Yard vai examinar o relatório do ex-juiz para ver se há provas que sustentem a abertura de uma investigação é outro revés. Em março, o órgão havia dito que não via elementos para uma investigação, mesmo depois de vários dos fatos que estão no documento já serem públicos, incluindo o crime de falsificação de documentos. Inconformado, o irmão da princesa voltou a protocolar nesta sexta-feira (21) um novo pedido de abertura de inquérito, a exemplo do que tinha feito em janeiro.
A história virou uma questão nacional. Há dois dias domina a pauta da imprensa e não sai das redes sociais. Parlamentares se manifestaram nesta sexta-feira questionando vários aspectos do caso, inclusive o motivo pelo qual o repórter foi recontratado pela BBC em 2016.
O escândalo envolve diretamente a família real, levando o príncipe William – segundo na linha de sucessão do trono – a fazer um pronunciamento atípico para os padrões concisos e protocolares da realeza. E envolve diretamente o governo, pois o primeiro-ministro Boris Jonhson não esconde a insatisfação com a BBC, em uma guerra aberta que se agravou depois das eleições gerais de 2019, em que o então candidato atacou frontalmente a cobertura jornalística, acusada por ele de parcial.
Na manhã desta sexta-feira, entrevistas dos secretários nacionais de Justiça e de Mídia, Robert Buckland e Oliver Dowden, pareciam seguir um roteiro combinado, defendendo mudanças severas. Falando à Sky News, Buckland disse que as descobertas “devastadoras” do inquérito sobre as ações “infundadas e erradas” de figuras importantes da BBC obrigam o governo a considerar se a governança da corporação deveria ser reformada.
No meio do dia, Boris Johnson manifestou-se na mesma linha, dizendo-se “muito preocupado” com o conteúdo do relatório, esperando que a rede faça tudo o que estiver ao seu alcance “para garantir que isso nunca mais aconteça”. E que coloque “a casa em ordem”.
As declarações e o clima de condenação fazem prever que são inevitáveis as mudanças na “Uncle Beeb” (Tia Beeb), como a BBC é carinhosamente chamada pelos britânicos. A rede opera por meio de um “royal charter”, uma concessão da monarquia, com ciclos renováveis. Funciona como um contrato com o governo estabelecendo a forma de operação e de financiamento. O ciclo atual termina em 2027, mas pela primeira vez foi introduzida uma revisão na metade do período, que vai acontecer no início de 2022, em um ambiente de pressão total por mudanças, como sugeriu Dowden no Twitter:
Algumas reformas podem vir até antes. Há um movimento sugerindo que mesmo antes da revisão, a BBC adote mudanças em sua governança. Isso dispensaria o governo de promover essas alterações à força em alguns meses.
As minas terrestres, que foram uma das causas abraçadas pela princesa Diana, com imagens de suas visitas a campos minados na África ocupando as manchetes mundiais, parecem estar de volta. O que está acontecendo com a BBC lembra um campo minado, com bombas ocultas que podem explodir décadas depois.
O escândalo atual está explodindo sob os pés de muita gente questionada por sua conduta – ou inação – à época, em uma história que parecia sepultada. Mas assim como no caso das minas, alguém lembrou que a bomba estava lá, calmamente aguardando alguém pisar.
A começar pelo protagonista, Martin Bashir, que foi do céu ao inferno. O jovem repórter que conseguiu o furo do século, uma entrevista com a maior celebridade do planeta revelando a infidelidade do futuro rei e sua “inabilidade” para o posto, virou estrela da BBC. Em 2004 mudou-se para os Estados Unidos para apresentar o Dateline, da ABC, supostamente com um contrato de US$ 1 milhão. Transferiu-se depois para a MSNBC, onde chegou a ter um programa próprio.
Em 2013, saiu da MSNBC por comentários impróprios a respeito da então candidata a vice-presidente Sarah Palin. Protagonizou também um episódio constrangedor em uma convenção de jornalistas asiáticos, com falas preconceituosas. Três anos depois foi acolhido de volta pela BBC, como editor de religião. Nos últimos meses estava afastado por motivo de saúde, mas durante o período chegou a ser fotografado andando na rua.
Junto com Bashir outros estão sendo arrastados. Cabeças começam a rolar e medalhões veem seus cargos ou reputações ameaçadas.
Tony Hall, a quem coube a decisão final sobre a inócua investigação de 1996, ascendeu ao mais alto cargo da rede, o de Diretor Geral. Desligara-se em agosto de 2020, dando lugar a Tim Davie. E após a conclusão da nova investigação, está sendo obrigado a deixar a honrosa posição de Chairman da National Gallery, para onde tinha ido.
Tim Suter, um executivo da rede que liderou a investigação sobre a falsificação em 1996, teve que deixar ontem (21) o posto de conselheiro no Ofcom, o órgão regulador das telecomunicações, que vai deliberar sobre o caso.
Sobrou também para James Harding, um dos mais respeitados jornalistas do país, que dirigiu a redação do The Times e fundou há dois anos o Tortoise Media, veículo de “slow news” que se tornou modelo de inovação em jornalismo.
Ele foi chefe de jornalismo da BBC entre 2103 e 2016, ano em que foi responsável pela readmissão de Martin Bashir. Agora está sendo obrigado a explicar porque tomou essa decisão.
Harding diz que não sabia de nada, e que o chefe (Tony Hall) não teve participação na volta de Bashir, assumindo plenamente a responsabilidade. No entanto, pensando numa cadeia de comando normal, é incomum a contratação de uma estrela, certamente com salário alto, não ter sido submetida ao chefe.
Também é improvável – embora não impossível – que um jornalista bem informado como Harding não tenha ouvido os rumores em torno da falsificação dos extratos bancários, que chegou a ser publicada pelo Daily Mail.
A favor de ambos, cabe lembrar que a investigação de 1996 isentou Bashir de culpa. Portanto, à luz do contexto anterior, o que hoje é classificado de conduta inaceitável não foi visto assim naquele momento. Dessa forma, em tese não havia uma causa objetiva para impedir Harding de trazer uma estrela para o seu elenco.
O problema é que esse debate trata sobre moral e ética jornalística, e não sobre questões formais ou legais. E não parece ser, como alguns apontam, um revisionismo histórico para julgar sob padrões atuais uma decisão que no passado era aceitável ou não era considerada antiética. Falsificar documentos para enganar uma fonte já era errado – e crime – há 26 anos. Esse é o raio que caiu sobre a BBC.
É difícil saber o que pode ser mais mortífero para a BBC nesse fogo cruzado em que se encontra. Os dois filhos de Diana lamentaram que a mãe tenha sido enganada. Mas o fizeram de forma diferente. A manifestação do príncipe William parece ser a mais danosa, capaz de comprometer o carinho que o povo tem pela rede que faz parte da vida dos britânicos.
William foi muito além do padrão da família real de usar notas oficiais concisas para comentar assuntos polêmicos. Segundo na linha de sucessão e com chances concretas de um dia se tornar rei Rei, mesmo assim ele optou pela exposição máxima.
O príncipe leu na quinta-feira diante das câmeras um longo statement, em tom formal lembrando mais um chefe de estado do que um filho. Sua fala tomou conta das redes sociais e das manchetes dos jornais do dia seguinte. E vem sendo reprisada pelas emissoras de TV à exaustão.
A empatia do povo britânico com os filhos da princesa é inquestionável. Ainda que a admiração por Harry tenha caído recentemente depois de ataques à família real, sobretudo entre os mais velhos, segundo pesquisas recentes. O discurso de William, o menino que em 1997 comoveu o país no cortejo fúnebre da mãe, morta em um acidente de carro em Paris causado pela perseguição de fotógrafos de celebridades que fez o motorista perder a direção, foi um golpe no coração da BBC.
William não mediu palavras ao culpar a direção da emissora. Chegou a dizer que as falhas não apenas decepcionaram sua mãe e sua família, mas também o público.
“O que mais me entristece é que se a BBC tivesse investigado adequadamente as queixas e preocupações levantadas pela primeira vez em 1995, minha mãe saberia que ela havia sido enganada”, disse ele.
“Ela foi enganada não apenas por um repórter desonesto, mas por líderes da BBC que olharam para o outro lado, em vez de fazer perguntas difíceis.”
“Isso efetivamente estabeleceu uma falsa narrativa que, por mais de um quarto de século, foi comercializada pela BBC e por outros”, disse ele.
William fez um afago ao jornalismo responsável, tentando separar o joio do trigo:
“Em uma era de fake news, a televisão de interesse público e uma imprensa livre nunca foram tão importantes.”
Já Harry foi mais genérico, e aproveitou para alfinetar a imprensa de forma geral. Afinal, junto com a mulher, Meghan Markle, ele se tornou um adversário da mídia em tempos recentes. Mas suas baterias parecem continuar voltadas para a realeza. No dia em que o escândalo da BBC tomava conta do país, optou por dar uma nova entrevista à apresentadora americana Oprah Winfrey sobre saúde mental. E voltou a desancar a família por não ter dado atenção ao seu estado emocional.
William quer que a entrevista da mãe não seja mais exibida. A ideia encontrou resistência. Em entrevista ao jornal The Times neste sábado (22), o jornalista Richard Ayre, que já foi diretor editorial da BCC, disse achar que as declarações do filho de Diana foram “exageradas”. Ele era responsável pela política editorial da BBC na época da entrevista, que considera “completamente fascinante e um documento importante”, embora “horrorizado” pelos métodos empregados para consegui-la.
Na sequência da publicação do relatório, a BBC iniciou um rosário de desculpas e uma “operação-resgate” de confiança. Enviou cartas à Rainha, aos filhos de Diana, ao irmão da princesa e até ao designer que teve sua vida profissional arruinada. Coube ao diretor-geral, Tim Davie, que assumiu o disputado cargo em setembro de 2020, o ônus de liderar a comunicação com a sociedade e com os envolvidos.
A emissora divulgou notas oficiais. Colocou no ar na noite de quinta-feira (20) uma edição especial do mesmo programa, o Panorama (que deveria ter ido ao ar na segunda-feira mas foi adiado), em que narra os fatos lamentáveis que envolveram a entrevista. Ed Power, crítico de TV do Daily Telegraph, jornal que publicou antecipadamente o conteúdo do relatório da investigação, classificou o programa de “caminhada final da vergonha”.
Mas a rede não anunciou mudanças ou punições, pelo menos até agora.
O único fato concreto foi a devolução dos prêmios que a emissora recebeu depois da entrevista em que Diana cunhou a frase histórica “há três de nós nesse casamento, está um pouco cheio”. O programa teve 23 milhões de espectadores no Reino Unido – sem contar o público que assistiu fora do país e que ainda assiste até hoje.
Devolver os prêmios deve ter doído, pois não foram poucos. O principal foi o BAFTA em 1996 de melhor programa de entrevistas na televisão. Martin Bashir foi premiado como o jornalista do ano e entrevistador do ano nos prêmios Royal Television Society. A entrevista rendeu ainda duas homenagens do Broadcasting Press Guild, incluindo o título de jornalista de TV do ano para o repórter.
Ao comunicar a devolução, a rede disse “não acreditar que seja aceitável reter esses prêmios por causa da maneira como a entrevista foi obtida. ”
No comunicado, Davie tentou até suavizar um pouco, mas assume a responsabilidade.
“Embora o relatório afirme que Diana, Princesa de Gales, estava entusiasmada com a ideia de uma entrevista com a BBC, é claro que o processo para garantir a entrevista ficou muito aquém do que o público tem o direito de esperar. Nós sentimos muito por isso.”
“Ainda que a BBC de hoje tenha processos e procedimentos significativamente melhores, aqueles que existiam na época deveriam ter evitado que a entrevista fosse conseguida dessa forma. A BBC deveria ter feito um esforço maior para descobrir o que aconteceu na época e ser mais transparente sobre o que sabia. Embora a BBC não possa voltar no tempo depois de um quarto de século, podemos fazer um pedido de desculpas completo e incondicional. A BBC faz isso hoje. ”
Bashir também reconheceu seu erro de julgamento. Mas não muito. Ele disse:
“Esta é a segunda vez que coopero de boa vontade com uma investigação de eventos há mais de 25 anos. Pedi desculpas então, e faço-o novamente agora, pelo fato de ter pedido a simulação de extratos bancários.”
Mas ao mesmo tempo mantém-se firme na posição de que os extratos falsos não foram determinantes para Diana conceder a entrevista.
“Foi uma coisa estúpida de se fazer e uma ação da qual me arrependo profundamente. Mas eu mantenho totalmente a opinião que apresentei um quarto de século atrás, e novamente mais recentemente.”
Tudo isso é bem diferente do que se falou na época. O relatório do ex-juiz Dyson registra que após a entrevista, o diretor de redação, Tony Hall, enviou uma carta ao repórter agora demonizado elogiando sua “habilidade, sensibilidade e excelente julgamento”. Hall acrescentou que o repórter tinha mudado a forma como a BBC cobre a monarquia. Disso não resta dúvida, mas a história mostrou que não era uma mudança para o bem.
Matt Wiessler, o designer gráfico que primeiro levantou preocupações sobre os documentos falsos usados para garantir a entrevista e que mais tarde foi dispensado pela BBC, vinha se mantendo discreto desde que as questões envolvendo a obtenção da entreivista vieram à tona novamente, em outubro de 2020 após o programa do Channel 4.
Os extratos mostravam supostos pagamentos feitos ao ex-secretário particular de Diana, Patrick Jephson, e a outro ex-membro da família real pelos serviços de segurança. E também pagamentos da Penfolds Consultants e da News International na conta bancária de Alan Waller, um ex-funcionário de Charles Spencer.
O designer sempre afirmou – e continua afirmando – que fez a manipulação da imagem mas desconhecia o uso a ser feito dela. Foi o único punido em 1996, tendo sido afastado. Na manhã de sexta-feira (21/5) ele deu uma entrevista ao programa Radio 4’s Today, da BBC, e também falou no programa Panorama especial exibido na véspera.