A suspensão da edição impressa do jornal Apple Daily de Taiwan, nesta terça-feira, (18 de maio), pode ser mais do que a adaptação de um veículo de comunicação ao ecossistema de mídia digital. A decisão havia sido anunciada horas antes de os bens do grupo de mídia dono no jornal, o Next Daily, terem sido congelados em Hong Kong, na semana passada, como parte das ações da China para limitar a liberdade de expressão e de imprensa no território.
Na segunda-feira, o Next Daily interrompeu a negociação de suas ações na bolsa de valores. O fundador do grupo, Jimmy Lai, de 73 anos, maior empresário de mídia de Hong Kong, com um patrimônio estimado em US$ 1 bilhão, está cumprindo uma sentença de 14 meses de prisão desde 16 de abril por “assembléias não autorizadas” durante os protestos pró-democracia de 2019.
Foi processado com base em uma Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em 2020, estabelecendo penas de até prisão perpétua para quem desafiar o regime. Ele ainda enfrenta outras acusações, incluindo fraude e conluio com forças estrangeiras.
Em 14 de maio, o gabinete de segurança de Hong Kong anunciou o congelamento das ações de Lai na Next Digital, bem como ativos nas contas bancárias locais de três empresas pertencentes a ele. O magnata da mídia detém atualmente 71,26 por cento das ações da Next Digital, avaliadas em mais de US$ 44 milhões.
A medida tinha o objetivo de evitar que “ bens relacionados ao crime ” fossem removidos de Hong Kong, disse o departamento de segurança em um comunicado. O congelamento pode ter dificultado o envio de recursos para o jornal do grupo em Taiwan, levando à decisão de suspender o impresso, com a demissão de mais de 300 profissionais. O diretor de redação, Chang Ye-Shing, renunciou ao cargo.
Ao anunciar a suspensão do Apple Daily de Taiwan, no entanto, o grupo afirmou que a decisão “terá um efeito positivo no desempenho financeiro geral a longo prazo”, em uma aparente tentativa de evitar confrontos com o governo chinês ao não associar a decisão ao congelamento dos bens da empresa.
O grupo Next Digital foi criado por Jimmy Lai em 1995, quando o empresário lançou o Apple Daily Hong Kong, em chinês e inglês, tornando-se uma das principais vozes a favor da democracia local. A condenação do empresário, junto com ativistas contrários ao governo de Hong Kong controlado pela China, gerou críticas de governos ocidentais e dengrupos de direitos humanos.
“A condenação injusta desses ativistas sublinha a intenção do governo de eliminar toda a oposição política”, disse a diretora da Anistia Internacional para a Ásia, Yamini Mishra.
A organização Repórteres sem Fronteiras também protestou, pedindo libertação imediata de Lai e o fim do assédio judicial contra ele. O empresário foi premiado com o 2020 RSF Press Freedom Awards (Prêmio de Liberdade de Imprensa).
“ Um ano e dois meses de prisão por participar de dois protestos pacíficos é uma punição totalmente desproporcional que revela como o governo está desesperado para silenciar Jimmy Lai, um símbolo da liberdade de imprensa em Hong Kong ”, disse Cédric Alviani, chefe da RSF no Leste Asiático.
Segundo a organização, a condenação é parte de uma campanha de assédio judicial de longa duração contra Lai, que está detido desde dezembro de 2020. O empresário enfrenta seis outros processos por fraude, conspiração para perverter o curso da justiça e por conspirar com forças estrangeiras, correndo o risco de prisão perpétua à luz da nova Lei de Segurança Nacional.
Lai tinha trânsito livre em Washington, tendo se encontrado com autoridades como o ex-secretário de Estado Mike Pompeo, para angariar apoio ao movimento pela democracia de Hong Kong, levando Pequim a rotulá-lo de “traidor”.
Em 12 de abril, em uma carta escrita em sua cela de prisão, ele pediu os funcionários do Apple Daily para “se manterem firmes”: “É nossa responsabilidade como jornalistas buscar a justiça. Contanto que não estejamos cegos por tentações injustas, contanto que não permitamos que o mal passe por nós, estaremos cumprindo nossa responsabilidade. ”
Hong Kong, que segundo a RSF já foi um bastião da liberdade de imprensa, caiu do 18º lugar em 2002 para o 80º lugar no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da organização. A República Popular da China, por sua vez, estagnou em 177º de 180º.
Os protestos pró-democracia de 2019 foram estimulados pelo aperto cada vez maior de Pequim sobre as amplas liberdades prometidas a Hong Kong após seu retorno ao domínio chinês em 1997.
A cidade portuária foi colônia britânica por 150 anos e virou um importante centro financeiro e de negócios. Um acordo entre a China e o Reino Unido devolveu Hong Kong ao controle chinês, prevendo uma administração sob o modelo “um país, dois sistemas”, em que o regime comunista não seria estendido ao território.
Mas gradativamente a China passou a adotar iniciativas para limitar críticas, gerando uma onda de protestos que explodiu em 2019, com a população tomando as ruas da cidade. A repressão foi severa, e em 2020 entrou em vigor a nova Lei de Segurança Nacional, com penas severas até de prisão perpétua para crimes como secessão, subversão, terrorismo ou conluio com forças estrangeiras.
O cerco da China sobre a imprensa não acontece apenas em Hong Kong. Em fevereiro, a notícia da prisão da jornalista australiana radicada na China Cheng Lei foi manchete em todo o mundo. Na mesma semana, a editora chinesa Geng Xiaonan foi condenada a três anos de prisão depois de se confessar culpada de operações comerciais ilegais. Ela havia falado em apoio a Xu Zhangrun, um professor de direito de Pequim que criticava Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês e tinha sido detida em setembro passado.
A China liderou em 2020 a lista de países apontados pela RSF como os que mais têm jornalistas encarcerados. Os outros são Egito, Arábia Saudita, Vietnã e Síria. O total de profissionais privados de liberdade em 1º de dezembro era de 387, segundo a entidade. Havia ainda 54 apontados como reféns − em Síria, Iraque e Iêmen − e quatro desaparecidos.
O número apresentado no relatório é a soma de repórteres profissionais, jornalistas-cidadãos (como blogueiros independentes) e os que trabalham para organizações de notícias em funções de suporte. Levando-se em conta apenas os profissionais, o número de presos era de 252, enquanto o de independentes era de 122 e o dos colaboradores era de 13.
Outra entidade que monitora violações à liberdade de imprensa, o Comitê para a Proteção aos Jornalistas, havia identificado pelo menos 274 jornalistas privados de liberdade em 1º de dezembro de 2020, dos quais 250 presos em 2020. Há variação nos números, mas em um ponto as duas entidades concordam: ambas apontaram a China como “o pior carcereiro do mundo”.