A menção à regulamentação das plataformas digitais no discurso anual da rainha Elizabeth II, um momento solene que marca a abertura do ano legislativo britânico, realizado nesta terça-feira (11/5) em Londres, não foi surpresa, pois já havia sido anunciada previamente. O projeto de lei prevê multas de até £ 18 milhões ou 10% do faturamento global, o que pode chegar a até quase R$ 100 bilhões no caso do Google. Em última instância, os reincidentes podem até ser banidos do país.
Mas o pacote anunciado ontem não é exatamente, o que pode parecer à primeira vista, uma iniciativa para censurar o discurso online. Por meio de duas leis, o Reino Unido tenta ao mesmo tempo controlar o que se fala nas redes, reduzir o poder das plataformas sobre a decisão do que é removido e evitar a “cultura do cancelamento”, não apenas na internet mas também nas universidades.
O texto de pouco mais de oito minutos lido por Elizabeth II no Parlamento ontem é de autoria do Governo, liderado pelo Primeiro-Ministro Boris Jonhson, do Partido Conservador, que ainda comemora a vitória nas eleições locais realizada na semana passada no embalo do Brexit e do sucesso do programa de vacinação.
O discurso apresentou as prioridades do Reino Unido para os próximos 12 meses, destacando cerca de 30 leis que o Governo pretende aprovar no Parlamento, incluindo grandes questões nacionais como saúde, educação, segurança pública, desenvolvimento e imigração. No trecho sobre as redes, a rainha disse:
“Meu governo vai liderar o caminho para garantir segurança na internet para todos, especialmente para as crianças, ao mesmo tempo em que explora os benefícios de uma internet livre, aberta e segura”.
Ao destacar a segurança na internet como uma das suas prioridades, o país responde a uma pressão social cada vez maior, que ganhou impulso nos últimos dois meses com o movimento liderado pelo futebol contra o racismo online que atinge jogadores.
Depois de algumas iniciativas isoladas de clubes e atletas, um amplo boicote de quatro dias às mídias sociais convocado pelas duas principais associações de futebol no fim de abril espalhou-se por outros esportes, patrocinadores, celebridades e até o príncipe William e sua mulher Kate Middleton. O texto de apresentação da nova lei faz referência ao boicote.
Mas a resposta do governo na regulamentação das plataformas digitais tem como objetivo apenas remover conteúdo ou bloquear pessoas que pregam discurso de ódio, demanda principal dos que se engajaram nesses boicotes. O projeto da Online Harm Bill (Lei de Danos Online), cuja íntegra será publicada nesta quarta-feira pelo Departamento de Mídia, Digital e Esportes, incorporou mudanças desde a versão inicial divulgada em dezembro passado, como informa o texto de apresentação:
“Os ministros acrescentaram novas medidas importantes ao projeto de lei para salvaguardar a liberdade de expressão e a democracia, garantindo que as proteções online necessárias não permitam censura desnecessária.”
A nova lei vai valer para mídas sociais, sites, aplicativos e serviços que hospedam conteúdo gerado pelo usuário ou permitem que as pessoas falem com outras pessoas, incluindo sites de namoro e games. Uma área importante para a imprensa ficou de fora: o conteúdo publicado pelos meios de comunicação e os comentários de leitores postados em sites.
O órgão que irá regular as plataformas, o Ofcom, obrigará que empresas como o Facebook e o Twitter ofereçam instâncias de recurso de fácil acesso aos usuários que tiverem suas mensagens removidas no processo de moderação.
De forma análoga, por meio de outra lei, o Office for Students, órgão regulador das universidades, passará a ter o poder de impor multas às instituições que não seguirem as regras. O governo pretende nomear um diretor para a liberdade de expressão e liberdade acadêmica, que investigará possíveis violações.
Um porta-voz da entidade que representa as universidades britânicas, a Universities UK, disse ao jornal The Times que as críticas às violações de liberdade de expressão no campus são exageradas e que a nova lei é desnecessária e criará mais burocracia.
O secretário de educação, Gavin Williamson, rebateu dizendo em entrevista ao mesmo jornal que a inovação legislativa reforçará os deveres legais existentes, encorajará o “debate intelectual aberto” e neutralizará o “efeito desanimador da censura no campus”.
Na proposta, foram destacados alguns exemplos em que a liberdade de expressão nas universidades foi restringida, como no caso de uma carta-aberta assinada por acadêmicos contra os comentários do professor de Oxford Nigel Biggar que diziam que os britânicos deveriam ter orgulho e também vergonha de seu império.
As duas novas leis fazem parte de um pacote mais amplo que incluem novas diretrizes em áreas diversas, como a ambiental, a de planejamento habitacional e eleitoral. Uma delas é vista como ameaça à liberdade de expressão e tem provocado protestos nas últimas semanas: : a que planeja dar à polícia mais poderes para barrar manifestações públicas com base em fatores como o nível de ruído provocado.
A proposta é baseada no conceito de Duty of Care (dever de cuidar), colocando o Estado na posição de proteger os vulneráveis, sobretudo crianças, como Elizabeth II destacou no discurso. E torna as plataformas legalmente obrigadas a protegerem seus usuários.
A ideia de regulamentação das plataformas digitais começou a avançar de forma mais concreta desde 2018, sobretudo depois do suicídio no ano anterior da adolescente Molly Russel, de 14 anos, que tinha acessado conteúdo de automutilação e suicídio. Ian Russel, pai da jovem, apoiou a regulamentação:
“É vital focar nas mentes das plataformas de tecnologia, para mudar sua cultura corporativa e reduzir os danos online, especialmente para os jovens e os vulneráveis. Agora é a hora de as plataformas priorizarem a segurança em vez do lucro; é hora de os países mudarem a Internet para sempre.”
O primeiro esboço da lei sobre danos online foi publicado em abril de 2019, propondo um novo regime de conformidade de fiscalização para controlar conteúdo nas plataformas. Em fevereiro de 2020, o governo definiu os detalhes preliminares da lei, e em dezembro publicou o pacote, revisado desde então para assumir a forma final.
O projeto de lei será examinado por um comitê de parlamentares antes de ser formalmente apresentado ao Parlamento. Está sujeito a emendas, mas o ambiente é favorável a um resultado final rigoroso para as plataformas.
O jornal Daily Telegraph adotou a causa, e desde então vem realizando uma forte campanha pela aprovação da lei. No Reino Unido, os jornais costumam eleger causas sociais para defender, não apenas com reportagens mas também com outros tipos de mobilização da sociedade e do meio político.
Nesta quarta-feira (12/5), o Telegraph foi agraciado com um artigo de opinião assinado pelo Secretário Nacional de Mídia, Oliver Dowden, que elogiou a campanha do jornal e deu um recado duro às plataformas:
“Já chega. Estamos enjoados de ódio e ameaças. Se é ilegal, plataformas como Facebook e Twitter terão que sinalizar e remover abuso online rapidamente ou enfrentar as consequências. O mesmo ocorrerá se infringirem os termos e condições. Chega de desculpas”.
Ao mesmo tempo, destacou a proteção ao jornalismo e a intenção de evitar a cultura do cancelamento, em uma alusão indireta aos líderes das Big Techs como Mark Zuckerberg
“A última coisa que queremos é que usuários ou jornalistas sejam silenciados pela súbita decisão do CEO de uma empresa de tecnologia ou por ativistas”.
Uma das dificuldades para operacionalizar a lei será sua aplicação aos serviços de mensagens. O governo não detalhou ainda como isso será feito sem violar a privacidade.
A nomeação do Ofcom (órgão regulador das telecomunicações) para fiscalizar as plataformas digitais quando a lei entrar em vigor foi um movimento importante no escopo da legislação. Chegou a ser considerada a criação de uma agência nova, mas ao escolher uma existente o governo encurtou o caminho.
O órgão já tem larga experiência em fiscalizar conteúdo, uma equipe bem organizada e agregar mais funções será mais fácil do que começar tudo do zero. Caberá ao Ofcom publicar códigos de conduta para determinar como as plataformas digitais deverão se adequar.
As penas para infrações podem chegar £ 18 milhões ou 10% do faturamento global (o que for mais alto) e suspensão de operar no país. Mas acabou não sendo incluída a responsabilização criminal dos executivos das empresas digitais que não seguirem a nova lei, embora o texto do governo sinalize que isso poderá ser adotado “em uma data posterior, se as empresas de tecnologia não intensificarem seus esforços para melhorar a segurança.”
Quando aprovada, a regulamentação será aplicada a empresas cujos serviços hospedam conteúdo gerado pelo usuário ou facilitam a interação entre usuários (mesmo que apenas uma das pontas da conversa esteja baseada no Reino Unido). E também aos mecanismos de busca.
De acordo com a proposta do governo, “todas as empresas abrangidas pela lei terão o dever de cuidar de seus usuários, de maneira que o que é inaceitável off-line também seja inaceitável on-line.”
“Eles precisarão considerar os riscos que seus sites podem representar para as pessoas mais jovens e vulneráveis e agir para proteger as crianças de conteúdo impróprio e atividades prejudiciais.
Também precisarão tomar medidas robustas para combater o abuso ilegal, incluindo uma ação rápida e eficaz contra crimes de ódio, assédio e ameaças dirigidas a indivíduos, além de manter suas promessas aos usuários sobre seus padrões.”
O texto determina que os maiores e mais populares sites de mídia social (classificados como serviços de Categoria 1) precisarão agir com base no conteúdo que é legal, mas ainda assim é prejudicial, como incentivo à automutilação e desinformação. E que precisarão declarar explicitamente em seus termos e condições como abordarão os danos legais.
A regulamentação das plataformas digitais a ser apresentada ao Parlamento terá disposições exigindo que as empresas denunciem o conteúdo de exploração e abuso sexual infantil identificado em seus serviços. Isso garantirá que as empresas forneçam às autoridades policiais as informações necessárias para proteger as vítimas e investigar os infratores, segundo o governo.
Este é um ponto defendido por entidades de proteção aos direitos da criança, que são contrárias à introdução da criptografia de ponta-a-ponta no Instagram e no Facebook Messenger.
A redução dos poder das plataformas para decidir unilateralmente sobre remoção de conteúdo virou ponto de honra para o govenro britânico. O texto de apresentação do projeto destaca o “processo mais eficiente de denúncia e pedidos de reparação, inaugurando uma nova era de responsabilidade e proteção para o debate democrático”:
“As empresas deverão adotar mecanismos novos para dar aos usuários a capacidade de contestar conteúdo e atividades prejudiciais que veem online.”
O governo ressalta que o projeto de lei “garantirá que as pessoas no Reino Unido possam se expressar livremente online e participar de um debate plural e robusto.” Informa que as salvaguardas serão definidas pelo Ofcom em códigos de conduta, mas adianta que poderão exigir moderadores humanos para tomar decisões em casos complexos onde o contexto é importante.
“A remoção do conteúdo precisará oferecer acesso a vias eficazes de recurso. As empresas devem restabelecer esse conteúdo se ele tiver sido removido injustamente. Os usuários também poderão apelar para o Ofcom.”
As maiores plataformas terão obrigações adicionais. Elas precisarão conduzir e publicar avaliações atualizadas de seu impacto na liberdade de expressão e demonstrar que tomaram medidas para mitigar quaisquer efeitos adversos.
“Essas medidas eliminam o risco de que as empresas online adotem medidas restritivas demais ou removam conteúdo em excesso nos seus esforços para cumprir suas novas obrigações de segurança online. Exemplo disso são as tecnologias de moderação de inteligência artificial, que sinalizam falsamente conteúdo inócuo como prejudicial, como a sátira.”
Uma novidade no projeto de regulamentação das plataformas digitais a ser publicado nesta quarta-feira é a introdução de dispositivos para proteger conteúdo definido como “democraticamente importante”, caracterizado como aquele que “promove ou se opõe a uma política governamental ou a um partido político antes de uma votação no Parlamento, eleição ou referendo, ou campanha sobre uma questão política ativa”.
O texto de apresentação da proposta diz que as empresas digitais também serão proibidas de discriminar pontos de vista políticos específicos e precisarão aplicar proteções iguais a uma série de opiniões políticas, independentemente de sua afiliação. E que ao moderar o conteúdo, precisarão levar em consideração o contexto político em torno do motivo pelo qual o conteúdo está sendo compartilhado e dar a ele um alto nível de proteção, se for democraticamente importante.
O conteúdo em sites de editores de notícias ficou de fora do escopo do projeto de lei, incluindo matérias e comentários de leitores sobre elas. E as empresas digitais classificadas na Categorai 1 ficam legalmente obrigadas a “salvaguardar o acesso dos usuários do Reino Unido ao conteúdo jornalístico compartilhado em suas plataformas”:
“Isso significa que eles terão que considerar a importância do jornalismo ao realizar a moderação de conteúdo, ter um processo rápido de apelação para o conteúdo removido por jornalistas e serão responsabilizados pelo Ofcom pela remoção arbitrária de conteúdo jornalístico.”
O texto da lei vai assegurar ao conteúdo dos jornalistas cidadãos as mesmas proteções do conteúdo dos jornalistas profissionais.
O projeto de lei proposto pelo governo foi além do conteúdo, incorporando medidas para combater fraudes. Segundo o texto de apresentação, “as empresas digitais terão, pela primeira vez, que assumir a responsabilidade por combater conteúdo fraudulento gerado por usuários, como postagens em mídias sociais, em suas plataformas.”
Um exemplo citado é o das chamadas fraudes românticas e oportunidades de investimento falsas postadas por usuários em grupos do Facebook ou enviadas via Snapchat. A fraude romântica ocorre quando a vítima é levada a pensar que está iniciando um relacionamento com alguém, geralmente por meio de um site ou aplicativo de namoro online, quando na verdade se trata de um fraudador que buscará dinheiro ou informações pessoais.
Fraudes por meio de publicidade, e-mails ou sites clonados ficaram de fora do projeto de lei por não serem danos cometidos por meio de conteúdo gerado pelo usuário.
O Reino Unido não é o primeiro país a legislar sobre as plataformas, e nem todas as iniciativas anteriores foram bem recebidas. O exemplo mais recente é o da Índia, que baixou um decreto em dezembro conferindo ao Estado poderes de censura, que já começaram a ser exercidos em março com a determinação às plataformas digitais para remover conteúdo sobre o surto do coronavírus.
Mas a lei proposta pelo governo britânico pode ser diferente das que foram propostas por países com governos autoritários ou em crise. E por ser um país de língua inglesa, seus efeitos devem se estender para um número muito maior de usuários das plataformas que acessam ou postam conteúdo em inglês.
O clamor social é forte a favor da regulamentação. E o governo de Boris Johnson tem maioria folgada no Parlamento, levando a crer que a aprovação é garantida, e que mudanças significativas a favor das plataformas não são prováveis.