O primeiro insatisfeito foi o próprio Trump, claro. Ele recorreu rapidamente ao seu novo blog – que emula uma rede social – para chamar a decisão de “desgraça”, esperando que seus seguidores compartilhassem a postagem.
Mas ele não foi o único a não gostar. Vários analistas e comentaristas apontaram a posição “em cima do muro” do Conselho, um órgão criado e financiado pelo Facebook, mas com independência para validar ou reverter decisões de remoção de conteúdo ou de usuários tomadas pelos moderadores da rede social.
O que um grupo de cinco membros do Facebook Oversight Board designado para decidir se Trump seria banido do Facebook fez foi simplesmente devolver o problema de volta à empresa, instando-a a tomar uma decisão definitiva sobre o caso em seis meses.
Banir Trump de vez do Facebook virou uma batata-quente descomunal, que pelo à primeira vista nem a plataforma nem o Conselho pago para tomar decisões quer assumir. E que provocou questionamentos sobre a validade do próprio Conselho.
O que disse o veredito:
O Conselho manteve a decisão do Facebook em 7 de janeiro de 2021, de restringir o acesso do então presidente Donald Trump para postar conteúdo em sua página do Facebook e conta do Instagram.
No entanto, não era apropriado que o Facebook impusesse a pena indeterminada e sem padrão de suspensão por tempo indeterminado. As penalidades normais do Facebook incluem a remoção do conteúdo infrator, a imposição de um período de suspensão com limite de tempo ou a desativação permanente da página e da conta.
O Conselho insiste que o Facebook analise este assunto para determinar e justificar uma resposta proporcional que seja consistente com as regras que são aplicadas a outros usuários de sua plataforma. O Facebook deve concluir sua análise deste assunto dentro de seis meses a partir da data desta decisão. O Conselho também fez recomendações de políticas para o Facebook implementar no desenvolvimento de políticas claras, necessárias e proporcionais que promovam a segurança pública e respeitem a liberdade de expressão.
Um dos membros, o jornalista britânico Alan Rusbridger, que foi editor do The Guardian por vários anos, escreveu um longo artigo no jornal nesta quinta-feira (6/5) em que descreve o processo que levou ao veredito sobre o caso que começou quando o Facebook suspendeu Trump da rede devido ao que considerou incitamento da violência, que resultou na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro.
O jornalista comentou a decisão, que lembra o ditado “uma no cravo, outra na ferradura”:
” O Facebook fez certo e errado. Certo ao remover as postagens de 6 de janeiro e no dia seguinte suspender o ex-presidente da plataforma. E errado ao bani-lo “indefinidamente”.
É fato que o Conselho deu demonstrações de independência, criticando abertamente a plataforma pelo que considera uma posição errada: a de ter feito o banimento “indefinidamente”, porque segundo o entendimento do grupo, as próprias políticas do Facebook não permitem isso. Um trecho da sentença é clara:
“Ao aplicar uma penalidade vaga e sem padrão e, em seguida, encaminhar este caso para que o conselho resolva, o Facebook procura evitar suas responsabilidades. O conselho recusa o pedido do Facebook e insiste que o Facebook aplique e justifique uma penalidade definida. ”
Mas nem todos concordam com o suposto erro do Facebook ao fazer o banimento por tempo indeterminado em janeiro. A organização Access Now, baseada em Bruxelas e dedicada a defender os direitos humanos no ambiente digital, divulgou um comunicado em que aplaude a decisão de manter Trump fora do Facebook.
Porém, se diz “alarmada” com a tese de que não seria apropriado decretar uma suspensão indefinida “mesmo com o histórico de Trump de usar as plataformas para incitar a violência e espalhar desinformação.”
Entre os debates motivados pela decisão está o questionamenot sobre o motivo pelo qual o Conselho criado para validar as decisões tomadas pela empresa não deliberou de uma vez, em vez de prolongar a agonia e fazer com que o Facebook tome a decisão sozinho e pague o preço lá na frente.
Rusbridger dá sua visão:
Como em julgamentos anteriores, criticamos a falta de clareza em algumas das próprias regras do Facebook, juntamente com a transparência insuficiente sobre como são aplicadas. Gostaríamos de ver o Facebook realizar uma revisão abrangente de sua contribuição potencial para a narrativa em torno da fraude eleitoral e nas tensões exacerbadas que culminaram na violência em 6 de janeiro.
Esta deve ser uma reflexão aberta sobre o design e as escolhas políticas que o Facebook fez que podem permitir o abuso de sua plataforma”.
O que parece ter sido a intenção do grupo foi forçar o Facebook a adotar políticas mais claras em vez de jogar o problema para o Conselho, porque muitas dessas decisões sobre banimento de pessoas ou de conteúdo são imediatas, devendo ser amparadas por padrões definidos e não por subjetividade.
O grupo, criado ano passado e formado por 19 especialistas em diversas áreas, fez uma série de recomendações à plataforma. Mas elas não poderiam ter sido feitas de qualquer forma, com uma decisão definitiva sobre o banimento de Trump?
Em seu artigo, Rusberg sugere que a devolução do caso ao Facebook pode ser mais efetiva no sentido de forçar a rede social a adotar regras objetivas. E justifica a existência do Conselho como órgão superior:
Vamos supor que concordemos que é ruim para uma pessoa, Mark Zuckerberg , ser responsável pelas regras de discurso de 2 bilhões ou mais de pessoas. Ele é claramente um engenheiro maravilhosamente talentoso – mas nada em sua formação sugere que ele esteja equipado para pensar profundamente sobre as complexidades envolvidas na liberdade de expressão.
Talvez a maioria das pessoas que estudaram o comportamento dos governos em relação às editoras e jornais por mais de 300 anos também concordem que os políticos não são as melhores pessoas em quem pode confiar decisões individuais sobre quem pode dizer o quê.
No vazio entre essas dois pólos surgiu o des surgiu o OSB. Somos completamente independentes do Facebook? Certamente nos sentimos assim. É verdade que o Facebook esteve envolvido na seleção dos primeiros 20 membros, mas assim que o conselho estiver completo, decidimos quem serão nossos futuros colegas. Desde algumas reuniões iniciais para entender os processos do Facebook em torno de moderação e assuntos semelhantes, não temos nada a ver com a empresa.
Mas nem todos pensam assim. Em um artigo publicado pela Associated Press analisando o caso, o presidente da organização Color of Change, Rashad Robinson, afirmou que o conselho é “um ardil para evitar ação regulatória”.
A legitimidade da decisão e do próprio Conselho também foi criticada pela Access Now. A organização questionou o Facebook por atribuir poderes decisões ao Oversight Board, afirmando que “não é uma autoridade judicial independente e, portanto, não pode substituir a supervisão pública independente com legitimidade democrática.”
E apontou o que considera falta de transparência na decisão sobre o banimento de Donald Trump, pelo fato de a plataforma não ter fornecido as informaçõe solicitadas pelo grupo que ela própria criou:
“A decisão carece de transparência significativa sobre como a curadoria de conteúdo algorítmica, design de interface e políticas do Facebook poderiam ter amplificado o conteúdo de Trump. Apesar de o Conselho ter solicitado essas informações ao gigante das mídias sociais, o Facebook se recusou – repetidamente – a divulgar os dados.
A transparência é um pré-requisito essencial para a supervisão pública dos processos de tomada de decisão do Facebook que têm consequências globais e de longo alcance. Devido à recusa do Facebook em compartilhar essas informações essenciais, a decisão falha em responder a perguntas cruciais sobre como os sistemas do Facebook impactam o discurso público democrático.”
O Conselho “alternativo” criado pela organização The Citzens, The Real Facebook Oversight Board, fez um debate sobre a decisão, ouvindo vários especialistas, e igualmente condenou o modelo do Conselho criado pelo Facebook.
O documento de 38 páginas descreve o caso e faz recomendações ao Facebook. Não há garantias que a rede vá aceitá-las, embora tenha designado um conselho de notáveis justamente para colaborar. Mas vale saber quais são, pois resumem boa parte do problema de discurso ofensivo nas redes sociais e questões ligadas à transparência.
O porta-voz do conselho, Dex Hunter-Torricke, deu várias entrevistas desde que a decisão foi anunciada defendendo a independência do grupo. Mas a Associated Press fez questão de lembrar que Hunter-Torricke atuou anteriormente como redator de discursos do CEO do Facebook, Mark Zuckerberg.
Em seu artigo no The Guardian, Alan Rusdbridger afirma que “a mídia social ainda está em sua infância. “E reconhece que o Conselho também está dando os primeiros passos, admitindo que o julgamento sobre Trump não poderia satisfazer a todos.
Mas diz esperar que o que o texto da sentença que manteve Trump banido do Facebook por mais seis meses seja visto como mais do que um veredito sobre o caso, constituindo-se em uma “contribuição séria para pensar sobre a liberdade de expressão em uma era de caos.”
A íntegra do documento está aqui