A declaração dada no dia anterior pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, insinuando que a pandemia de coronavírus poderia ser parte de uma "guerra bacteriológica", indagando qual país "que mais cresceu seu PIB", teve forte repercussão na audiência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) com o chanceler Carlos França, nesta quinta-feira (6).
A presidente da CRE, Kátia Abreu (PP-TO), considerou a fala de Bolsonaro uma "acusação muito grave" e disse que "nem dormiu direito" por temer algum tipo de retaliação do governo da China, onde ocorreram os primeiros registros de contágio pelo novo coronavírus, no fim de 2019. A principal preocupação da senadora é que as relações comerciais com a China possam ser prejudicadas. Além disso, o Brasil depende dos insumos provenientes da China para a fabricação de vacinas contra a covid-19.
Kátia Abreu revelou que foi procurada por centenas de grandes exportadores brasileiros para a China, por meio de mensagens e ligações telefônicas, preocupados com as consequências da fala de Bolsonaro. A senadora acrescentou que, se em 2020 o Brasil teve um superavit na balança comercial, que superou US$ 50 bilhões, foi graças à China.
— Sem as compras chinesas, o superavit teria sido de US$ 18 bilhões. A China é nosso maior parceiro comercial desde 2009, e o Brasil precisa entender que o crescimento deles nos favorece. Se a China crescer 5% por ano nos próximos 10 anos, o aumento de nossas exportações será ainda mais exponencial — disse.
Na resposta à senadora, o ministro das Relações Exteriores concordou com o diagnóstico de que o crescimento chinês favorece o Brasil. Carlos França disse ter conversado na quarta-feira com Bolsonaro, que lhe garantiu que "nossas relações com a China devem continuar sendo as melhores", e que não teria se referido especificamente ao país quando mencionou a possível "guerra biológica".
O ministro declarou que o Brasil não tem "nenhum problema político com a China" e disse ter conversado nesta quinta com o embaixador do Brasil em Pequim, Paulo Estivallet.
— O diplomata Estivallet me deu excelentes notícias: 80% dos insumos farmacêuticos (IFAs) usados nas vacinas contra a covid-19, fabricados pela China, são enviados ao Brasil. Em contato que teve com autoridades chinesas hoje, Estivallet me comunicou que eles continuarão priorizando nosso país — esclareceu.
Outro foco do debate foi a decisão do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de apoiar a suspenção de patentes de vacinas, aliando-se a países emergentes na Organização Mundial de Comércio (OMC). A posição norte-americana é semelhante ao Projeto de Lei (PL) 12/2021, aprovado recentemente no Senado, que autoriza o governo do Brasil a decretar a licença compulsória temporária de patentes de vacinas, testes de diagnóstico e medicamentos no enfrentamento à covid-19. Após a fala de Biden, a União Europeia (UE) também se disse "pronta" para debater a suspensão temporária das patentes.
O tema foi abordado por Katia Abreu, pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS), que foi relator do projeto de Paim) e pelo senador Esperidião Amin (PP-SC). A presidente da CRE disse estranhar a resistência do governo brasileiro à demanda, proposta inicialmente pela Índia e pela África do Sul e apoiada por mais de 100 países emergentes.
— O Brasil é signatário do acordo Trips [no âmbito da OMC], que prevê esta possibilidade em situações extremas. Queremos fabricar em quantidade pra nós, brasileiros, mas temos capacidade de fornecer pra América Latina e África. Pagando royalties, não é de graça. É uma quebra temporária de patente, as empresas donas não terão prejuízo. Acho que estamos isolados de novo. Nos aliamos inicialmente aos EUA e à UE nesta discussão contra mais de 100 países, e agora somos atropelados por EUA e UE sem nenhum aviso — lamentou Kátia Abreu.
Na resposta, França voltou a defender a posição do governo, de que o Brasil "não deve se afastar das empresas farmacêuticas".
— Nossa posição na OMC, com o apoio de Canadá, Chile e da atual direção da OMC, é facilitar a produção local das vacinas contra a covid-19, com um maior acesso às mesmas por parte dos países em desenvolvimento. Estamos analisando a mudança de posição dos EUA, mas este imbróglio vai levar tempo pra ser definido. Vou inclusive me reunir com autoridades dos EUA, nossa posição também pode mudar. Mas não sei se a posição deles vai produzir consenso internacional, e que países terão capacidade de produzir mais. A maioria dos países vai continuar dependendo da cooperação das farmacêuticas, e o Brasil não deve se afastar de investidores e exportadores de vacinas — afirmou o ministro, para quem a suspensão das patentes poderia afetar as negociações com a AstraZeneca e outros produtores.
Amin e Trad também colocaram em debate a busca de soberania na produção dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) no combate à covid-19. França disse que as perspectivas são "otimistas" e o assunto está "perto da solução".
— A posição do governo Bolsonaro pelo acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca, através da Fiocruz, busca esta soberania. A Fiocruz prevê que em setembro já dominaremos todo o ciclo da produção da vacina. A geração da célula-mãe, a produção do IFA e depois a produção da vacina. Serão 1 milhão de doses por dia, podendo atualizar a vacina para eventuais variantes - informa.
Katia Abreu reiterou que o Brasil precisa votar ser proativo no debate mundial relacionado às questões ambientais, "pois por décadas lideramos estas discussões nos fóruns internacionais". Ela lamentou que grandes redes de supermercados europeias estejam banindo a venda de produtos do país devido à pressão de consumidores em razão de o Brasil "desmatar a Amazônia". Para a senadora, não adianta o governo brasileiro repetir que o país emite menos gases poluentes que China, EUA e UE se o desmatamento das florestas continuar tendo eco mundial. Por isso, continuou, o Brasil precisa se comprometer em cumprir as metas que pactua internacionalmente nesta área, ou poderá sofrer prejuízos nas exportações.
Na resposta, o chanceler disse crer que o Brasil cumprirá suas metas neste campo "melhor que os EUA, UE, China e Índia".
Carlos França revelou que o Fundo Soberano da Arabia Saudita planeja investir US$ 10 bilhões no Brasil. Segundo ele, isso abre a janela para a busca de mais investimentos de outros Fundos Soberanos do Oriente Médio, que já investem no Brasil e podem se interessar por projetos do Programa de Parcerias em Investimentos (PPI). Ele lembrou o grande potencial de investimentos destes Fundos, que estão entre os maiores do mundo.
Reforma da OMC
O chanceler falou ainda sobre a estratégia que o Brasil seguirá nos debates sobre a reforma da OMC, prevista para o final do ano, na Suíça.
— Defenderemos combater restrições às exportações de bens agrícolas e subsídios que distorcem este comércio. Também queremos eliminar subsídios que ainda ocorrem relacionados à pesca ilegal e outros subsídios no setor da pesca. E trabalharemos por um acordo de facilitação de investimentos com maior transparência e simplificação de procedimentos. Vamos também completar nossa participação no acordo sobre contratações governamentais, e atuar pela conclusão de acordos sobre comércio eletrônico e regulamentação domestica de serviços — concluiu França.