Na semana passada, o Google anunciou 64% de aumento na receita e 162% no lucro líquido no primeiro trimestre, resultado atribuído ao crescimento em propaganda, demonstrando que o movimento de 2020 não incomodou em nada.
Dessa vez, no entanto, pode ser diferente, e já está sendo. O boicote de três dias convocado pelas associações de futebol britânicas contra o racismo online chegou à mais simbólica instituição do país: a família real. Na sexta-feira, o príncipe William, presidente da da FA (Footbal Association), anunciou que ele e a mulher Kate Middleton não postariam nada em suas redes durante três dias.
Mais importante do que isso foi a notícia de que a nova regulamentação das mídias sociais no país, que está em tramitação, vai equiparar o racismo online a outros crimes – antisemitismo, estímulo ao suicídio e à automutilação. E fará parte do discurso anual da rainha Elizabeth II, que marca a abertura do ano parlamentar, em maio.
É um ato de alto simbolismo que tem também efeitos práticos, pois a fala da monarca anuncia a agenda legislativa do ano. Sinal eloquente de que a causa saiu das fronteiras do esporte para tornar-se uma questão nacional.
Reclamações contra racismo online não são novas, mas tomaram nos últimos dois meses uma dimensão inédita graças à iniciativa das principais associações de futebol do país, lideradas pela Premier League e pela FA (Footbal Association). O boicote das mídias sociais – Twitter, Facebook e Instagram – ganhou a adesão de ligas locais e internacionais de futebol, incluindo a Uefa e a Fifa; de diversos outros esportes, como tênis, rúgbi, críquete e ciclismo; de comentaristas esportivos; de patrocinadores; de veículos de imprensa – Sky News, Guardian Sports – e de atletas de outras modalidades.
Um dos mais notórios foi o campeão de automobilismo Lewis Hamilton, que vem se destacando no combate à discriminação racial e acabou atraindo outros astros da Fórmula 1 para o movimento.
Diferentemente de outros protestos, porém, a iniciativa vai além da mera reclamação. O movimento tem uma pauta objetiva, cobrando das plataformas digitais globais a adoção de mecanismos que impeçam ataques racistas e, do Governo britânico, o rigor na lei que punirá severamente as empresas de mídias digitais que permitem discurso de ódio nas redes.
Mesmo antes do boicote envolvendo todos os clubes do país começar, resultados da pressão começaram a se fazer sentir. O Facebook anunciou uma nova ferramenta para filtrar automaticamente as solicitações de mensagens diretas do Instagram contendo palavras, frases e emojis ofensivos e recursos para bloqueio preventivo de novas contas criadas por abusadores.
E o Governo revelou detalhes da nova lei que será formalmente anunciada pela rainha,.
Em entrevista à BBC na manhã de sexta-feira (30/4), Edleen Jonh, diretora de diversidade da Premier League, disse não esperar que, quando o boicote acabe, na terça-feira, o problema do racismo online esteja resolvido. Mas acredita que a pressão vai fazer com que a engrenagem para acabar com ele gire mais rápido.
Nas redes sociais, as hashtags #StopOnlineAbuse e #socialmediaboycott destacavam-se entre os trending topics. Todos os times de futebol engajados no boicote postaram em suas redes, com discursos duros condenando o racismo online.
Há dois anos, vários jogadores de futebol britânicos participaram da campanha #Enough, um boicote de 24 horas nas redes sociais em protesto contra o abuso online. Mas não adiantou muito.
Uma investigação da Professional Footballers’ Association, o sindicato dos jogadores, encontrou 56 postagens abusivas no Twitter em novembro de 2020. A PFA diz ter comunicado às plataformas, mas, segundo a BBC, 31 delas ainda estão visíveis, o que a organização descreveu como “absolutamente inaceitável”.
A onda mais recente contra o racismo online foi iniciada pelo astro do futebol francês Thierry Henry, que em março fechou todas as suas contas de mídias sociaispara demonstrar sua indignação com o que considera falta de energia das plataformas digitais para coibir os abusos. Em seguida foi a vez de três clubes britânicos, Swansea City, Rangers e Birminghan City, ficarem três dias sem postar nas redes.
Foi o estopim para o boicote que agora toma conta de todo o futebol e outras modalidades esportivas. A convocação foi assinada pela Premier League e pela FA (Football Association) e pelas demais associações de futebol do país, como as ligas femininas das duas entidades, a English Football League, a Professional Football’s Association, a Football Supporters’ Association e a League Managers Association.
No statement anunciando a paralisação, as associações reconhecem o valor da conectividade proporcionada pelas redes, que consideram vital para os esportes, mas demandam das plataformas o fim dos abusos:
“Este boicote mostra que o futebol inglês está unido para enfatizar que as empresas de mídias sociais devem fazer mais para erradicar com o ódio online, ao mesmo tempo que destaca a importância de educar as pessoas nesta luta contínua contra a discriminação”.
“Na carta de fevereiro de 2021, o futebol inglês pediu às empresas de mídias sociais maior filtragem, bloqueio e remoção rápida das publicações ofensivas, um processo de verificação rigoroso e prevenção em relação a novos registros e assistência ativa para as agências governamentais que aplicam as leis para identificar e processar as origens desse conteúdo ilegal”.
O statement reconhece que foram feitos alguns progressos, mas reitera as demandas como “um esforço implacável para conter o fluxo de mensagens discriminatórias e garantir que existam consequências na vida real para quem pratica abusos online em todas as plataformas”. E explica o papel do futebol:
“O boicote isolado do futebol não vai erradicar o flagelo do abuso discriminatório online, mas pelo menos vai demonstrar que o esporte está disposto a dar passos voluntários e proativos nessa luta contínua”.
O Governo britânico também está sendo alvo de cobranças. Em novembro de 2020 foi publicado o projeto de lei da nova regulamentação de plataformas digitais, chamada Online Harm Bill. A lei baseia-se no conceito de duty of care (dever de cuidar), conferindo ao Estado poderes para punir quem coloca a vida de vulneráveis em risco, com grande ênfase nas crianças e jovens.
A lei está em tramitação, mas os que lideram o boicote querem mais velocidade e que a lei não seja flexibilizada.
“Pedimos ao Governo do Reino Unido a garantia de que a Lei de Segurança Online será uma legislação com força para tornar as empresas de mídias sociais mais responsáveis pelo que acontece nas suas plataformas”.
Edleen John, diretora de Diversidade e Inclusão da FA, disse:
“É simplesmente inaceitável que as pessoas no futebol inglês e na sociedade em geral continuem sujeitas a abusos discriminatórios online diariamente, sem consequências no mundo real para os perpetradores.
Isso precisa mudar rapidamente e continuamos a exortar as empresas de mídia social a agirem agora para resolver isso. Não vamos parar de falar sobre essa questão e continuaremos a trabalhar com o Governo para garantir que o Projeto de Lei de Segurança Online dê poderes regulatórios e de supervisão suficientes para o órgão regulador.
As empresas de mídia social precisam ser responsabilizadas se continuarem a não cumprir suas responsabilidades morais e sociais para lidar com esse problema endêmico.”
A convocação é assinada também pela ONG Kick it Out, de combate ao racismo no futebol. Sanjay Bhandari, presidente, condenou o ambiente das redes:
“A mídia social é agora, infelizmente, um ambiente de abuso tóxico. Este boicote significa nossa raiva coletiva pelos danos que isso causa às pessoas que jogam, assistem e trabalham em esportes. “
O jogador brasileiro Willian vem sendo destacado pela Premier League como um dos porta-vozes contra o racismo online, por ter sofrido vários ataques.