Com 55 votos a favor e 19 contra, o Plenário do Senado aprovou nesta quinta-feira (29) proposta que autoriza o governo brasileiro a decretar a licença compulsória temporária de patentes de vacinas, testes de diagnóstico e medicamentos para o enfrentamento da covid-19. O objetivo é acelerar o processo de imunização. Os PLs 12/2021 e 1.171/2021 foram apensados e votados em conjunto, com relatório do senador Nelsinho Trad (PSD-MS). A proposta, consolidada com o texto substitutivo do relator, segue agora para a análise da Câmara dos Deputados.
— Os tratados dos quais o Brasil é parte permitem o licenciamento compulsório de patentes e existe previsão legal para tal na legislação brasileira. Contudo, diante da magnitude da tragédia trazida pela pandemia do coronavírus, essa legislação pode ser aperfeiçoada, de forma a agilizar o licenciamento compulsório dos insumos, medicamentos e vacinas de que o nosso país tanto precisa. É nesse sentido que propomos a introdução de modificações à Lei de Propriedade Intelectual. Propomos prever que poderá ser concedida licença compulsória quando não forem atendidas as necessidades de emergência nacional ou de interesse público, declarados em lei ou ato do Poder Executivo Federal, ou diante de estado de calamidade pública de âmbito nacional, decretado pelo Congresso Nacional — resumiu o relator.
O projeto original do senador Paulo Paim (PT-RS), o PL 12/2021, dispensava o Brasil de cumprir — enquanto durasse a situação de emergência provocada pelo coronavírus — algumas exigências adotadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips). O substitutivo de Viana retirou essa previsão.
— É hora de votarmos pela vida, com vacinas para todos. A única ponte concreta para atravessar a pandemia é a vacina. Vidas não têm preço! — afirmou Paim, que apoiou o substitutivo de Trad.
Já o PL 1.171/2021 (que foi considerado prejudicado, mas com seu conteúdo contemplado no substitutivo), dos senadores Otto Alencar (PSD-BA), Esperidião Amin (PP-SC) e Kátia Abreu (PP-TO), previa a licença compulsória do antiviral Remdesivir.
Nesta quinta-feira (29), o Brasil ultrapassou a marca oficial de 400 mil pessoas mortas pela covid-19. O número trágico foi alcançado em menos de 14 meses, já que a primeira morte oficial no país ocorreu em 12 de março de 2020. Até agora,19% da população adulta (mais de 31 milhões de pessoas) se vacinou com a primeira dose de alguma vacina. Pouco mais de 9% de adultos — 15 milhões — já receberam duas doses.
Nelsinho Trad, em seu relatório, observou que “não é possível suspender por meio de legislação federal, ainda que parcialmente, partes de um tratado internacional ratificado pelo Brasil. Esse instrumento tem meio próprio de negociação, de emenda e de reservas, ditado pelos seus próprios termos e pelo direito internacional".
Contudo, ainda que o acordo Trips não possa ser modificado por uma lei ordinária, o senador considera que "ele contém as salvaguardas necessárias para permitir que o Brasil possa promover as alterações necessárias à Lei 9.279, de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à [lei de] propriedade industrial (LPI)".
Ele destacou que a LPI foi elaborada de forma a levar em consideração os acordos internacionais ratificados pelo Brasil, que já preveem a possibilidade do licenciamento compulsório de patentes, em circunstâncias excepcionais.
O art. 71 da LPI prevê a possibilidade de ser concedida, "de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular, nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade".
Nelsinho Trad lembra que o Brasil já se utilizou dessa prerrogativa no passado, ao promover, por meio do Decreto 6.108, de 2007, o licenciamento compulsório do Efavirenz, um dos medicamentos utilizados no tratamento de pacientes com aids.
Já o PL 1.171/2021 previa a “licença compulsória, temporária e não exclusiva” do Remdesivir. Primeiro medicamento a ter recomendação em bula para tratamento de pacientes com o novo coronavírus, o antiviral foi liberado pela Anvisa para tratamento da covid-19. As pesquisas mostram a diminuição no tempo de internação e no tempo de uso de oxigênio hospitalar dos pacientes que tomaram a droga de forma intravenosa. O projeto foi considerado prejudicado no relatório de Nelsinho Trad, pois fica "plenamente incorporado" no texto substitutivo, que explicita o Remdesivir entre os medicamentos contemplados pela proposta.
De acordo com a Anvisa, o antiviral pode ser utilizado no Brasil apenas em hospitais, em pacientes internados com idade superior a 12 anos, que estejam com pneumonia e precisem de suplementação de oxigênio. O medicamento não cura a covid, mas estudos indicam que ele teria a capacidade de diminuir a replicação do vírus, atrasando assim o avanço da doença. Na justificativa do projeto, Otto Alencar, Esperidião Amin e Kátia Abreu consideraram exorbitante o preço cobrado pelo medicamento no Brasil (cerca de R$ 13 mil o tratamento padrão). No exterior, o remédio custa US$ 300.
O texto de Trad propõe, em situações de emergência como a atual pandemia, criar duas etapas no processo de licenças compulsórias. Na primeira, declarada a situação de emergência, o Poder Executivo deverá publicar, em até 30 dias, uma lista de patentes relacionadas a produtos e processos essenciais para o combate à pandemia. Na prática, seria uma lista de patentes que poderiam vir a ser licenciadas de maneira compulsória.
Pela proposta, órgãos públicos, instituições de ensino e pesquisa, organizações sociais e entidades representativas da sociedade civil deverão ser consultadas no processo de elaboração da lista de patentes ou pedidos de patentes que poderão ser objeto de licença compulsória. Além disso, qualquer instituição pública ou privada poderá apresentar ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi) pedido para inclusão de patente ou pedido de patente na lista, que deverá ser constantemente atualizada.
Na segunda etapa, seriam efetivamente concedidas licenças apenas de patentes da lista de prioridade para as quais surgissem propostas efetivas e baseadas em condições objetivas de mercado, capacitação tecnológica e de investimentos para sua produção no país.
As licenças serão concedidas de ofício, por tempo determinado e de forma não exclusiva, sem prejuízo dos direitos de seu respectivo titular.
É estabelecida a obrigatoriedade de o titular da patente ou pedido de patente feito ao Inpi compartilhar as informações necessárias à sua reprodução, sob pena de nulidade da patente. Fica garantida, segundo a proposta, a remuneração devida ao titular da patente, que deverá ser calculada de acordo com as circunstâncias de cada caso.
O substitutivo acrescenta ao art. 71 da LPI a possibilidade de excluir da lista de licenciamento compulsório as patentes em que o Poder Executivo considerar que seus titulares assumiram compromissos objetivos de atender às necessidades de emergência nacional ou de interesse público por intermédio da exploração direta, do licenciamento voluntário ou de importações.
Também assegura, no que diz respeito à pandemia do coronavírus, que não sejam incluídas na lista de licenciamento compulsório as vacinas que já tiverem sido objeto de acordos de transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário capazes de assegurar a exploração eficiente da patente e o atendimento da demanda interna. O objetivo, segundo Trad, é evitar impactos negativos sobre arranjos em curso destinados a ampliar a oferta de vacinas e a permitir a produção de vacinas em território nacional.
Os produtos fabricados com o emprego de patentes ou pedidos de patentes objeto de licença compulsória poderão ser exportados para outros países em situação de emergência sanitária agravada pela carência de tais produtos.
O texto aprovado determina também que o Poder Executivo, em até 30 dias contados a partir da publicação da lei que o projeto gerar, elabore a lista das patentes e pedidos de patentes sujeitas a licenciamento compulsório diante da pandemia do coronavírus.
Trad destaca que o Brasil, se aprovar a proposta, não será o primeiro país a permitir o licenciamento compulsório de patentes para o combate à covid-19. Ele cita o exemplo do Canadá que, em março de 2020, no início da pandemia, alterou sua legislação para enfrentar o coronavírus. O relatório menciona ainda iniciativas de Israel, Equador e Coreia do Sul.
Para Paulo Paim, a pandemia está se agravando com o surgimento de novas cepas. "A suspensão temporária de patentes das vacinas e dos medicamentos contra a covid-19 é urgente e essencial para conseguirmos vacinar toda a população. Se não fizermos isso, no ano que vem ainda estaremos 'chorando' a nível internacional para ver se vamos ter vacinas. Precisamos salvar vidas, retomar as atividades, gerar empregos", justificou Paim.
No relatório, Nelsinho Trad destaca que a Constituição assegura os direitos dos autores de inventos industriais, na forma da lei, mas afirma que essa proteção de patentes não é absoluta.
— Há, portanto, uma forte proteção das patentes, mas ela não é absoluta.
Além disso, segundo ele, "é necessário realizar uma interpretação sistemática da Constituição na qual deve-se recordar que o direito à saúde é consagrado como um direito social, sendo ainda garantido a todos o acesso universal e igualitário às políticas de saúde". "Esta proposição busca salvar vidas", considerou.
O desenvolvimento de um medicamento ou uma vacina, em geral, tem um custo bastante elevado, por isso — apesar de quase sempre também haver grande montante de investimento de dinheiro público nas pesquisas — o laboratório registra uma patente que garante a ele a possibilidade exclusiva de fabricação do produto.
Mesmo laboratórios estatais, como Butantan e Fiocruz, não podem repassar o processo de fabricação das vacinas contra covid-19, porque assinaram um compromisso com os laboratórios que desenvolveram as vacinas que eles fabricam.
De acordo com senadores, a proposta não é ignorar o direito às patentes, mas relativizá-lo, em caráter temporário, em vista do interesse maior do povo brasileiro. Segundo Paim, essa ideia é defendida no mundo inteiro (sendo que Índia e África do Sul apresentaram proposta nesse sentido à Organização Mundial de Saúde em movimento com apoio de 100 países) e apoiada por instituições brasileiras, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS).
“O Brasil pagou ao Instituto Serum, da Índia, mais do que o dobro do valor pago pelos países da União Europeia pelos 2 milhões de doses da vacina desenvolvida pela AstraZeneca: US$ 5,25 por dose. Os países ricos da União Europeia pagaram apenas US$ 2,16 por dose. Essa lógica torna os países reféns da indústria. O monopólio de uma empresa impede a concorrência e coloca em risco as ações de combate à doença”, disse na justificativa do projeto.
Vice-líder do governo, o senador Carlos Viana (PSD-MG) colocou-se contrário à aprovação da proposta por entender que poderia prejudicar o Brasil internacionalmente e até dificultar a chegada de novas doses de vacinas no país. Para ele, o Brasil precisa de regras jurídicas claras e de respeito a elas.
— Há um sistema internacional que pode punir países que desrespeitam regras. Governar é não cair na tentação fácil. Patente é um acordo internacional. Não vai ser quebrando patentes, desrespeitando acordos, que nós vamos conseguir o resultado que queremos. Já há vacinas sendo desenvolvidas no Brasil — disse Viana.
O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) disse que o melhor seria o país invistir mais no desenvolvimento de vacinas nacionais.
A senadora Simone Tebet (MDB-MS) afirmou que, em tempos normais, a proposta não precisaria ser aprovada. Entretanto, a senadora avalia que o Brasil está em “guerra contra um vírus”. Além disso, ela ressaltou que o texto tem caráter autorizativo, dando ao presidente da República mais um instrumento para obtenção de vacinas.
— Vamos dar esse voto a favor da vida, a favor do povo brasileiro — disse Simone Tebet, ressaltando que o texto aprovado não desrespeita acordos ou regras internacionais.
Por sua vez, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) afirmou que nenhum dos especialistas que participaram da audiência pública sobre o tema, na comissão de acompanhamento da covid, declarou apoio à quebra de patentes. Para ele, o projeto tem grandes chances de ser contestado no STF ou ser vetado pelo presidente da República.
Presidente da comissão de acompanhamento da covid-19, o senador Confúcio Moura (MDB-RO) disse que votaria contra a proposta. Ele disse que especialistas do Butantan, da Fiocruz e de ministérios são contrários à quebra de patentes.
— Todos falaram que não seria conveniente a quebra de patentes neste momento. Não posso discordar desses especialistas. Não acreditamos que a quebra de patentes vai aumentar as vacinas para o Brasil — disse Confúcio.
O senador Eduardo Braga (MDB-AM) avaliou que o texto em votação não quebraria qualquer acordo internacional. Ex-ministro da Saúde, o senador Humberto Costa (PT-PE) repetiu o mesmo argumento e disse que a aprovação do projeto iria dar força à luta de diversos países, a maioria pobres, para conseguir mais vacinas.
— É uma decisão com força moral — disse Humberto Costa, ressaltando também o caráter autorizativo do projeto e a necessidade de o Brasil recuperar a posição de liderança internacional no campo da saúde pública.
Os senadores Fabiano Contarato (Rede-ES), Rogério Carvalho (PT-SE), Rose de Freitas (MDB-ES), Zenaide Maia (Pros-RN), Paulo Rocha (PT-PA) e Esperidião Amin (PP-SC) também apoiaram a iniciativa, acompanhando os argumentos do relator.
— A vida humana está acima de qualquer interesse econômico. É uma decisão momentânea para salvar vidas — afirmou Contarato.
Para o senador Carlos Portinho (PL-RJ), a aprovação do projeto é necessária para dar força ao Brasil em meio às negociações internacionais.
— Não estamos quebrando patentes aqui. Estamos aumentando a força do país para negociar, até numa situação futura, porque a pandemia continua — disse o senador, apoiando o texto de Trad.