A flexibilização de acordos comerciais dos países membros do Mercosul com parceiros de outros continentes será fundamental para garantir a sobrevivência comercial do bloco comercial aos novos tempos. Essa foi a avaliação dos participantes de sessão remota realizada sexta-feira (23) pelo Senado para debater e celebrar os 30 anos do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul.
O encontro sobre o tema "Mercosul: avanços, desafios e perspectivas" reuniu a economista Zélia Cardoso de Mello, ministra da Economia, Fazenda e Planejamento do Brasil no período de 1990 a 1991, e o jurista Francisco Rezek, ministro das Relações Exteriores no período de 1990 a 1992, quando da assinatura do Tratado de Assunção. A iniciativa do debate partiu do senador Fernando Collor (Pros-AL), que presidia o país por ocasião da criação do Mercosul.
A sessão também teve a participação do ministro da Economia, Paulo Guedes, e o ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto Franco França.
Na abertura do encontro, Collor destacou que o Brasil é uma das maiores economias do mundo e possui patrimônio de valor inestimável em recursos de biodiversidade, o que torna o país importante demais para ficar fora das grandes decisões globais, seja no tema de meio ambiente ou de integração regional.
— Não podemos abandonar décadas de ação eficaz e coerência diplomática em troca de ganhos incertos, eventual decepção de países amigos, discordâncias de pessoais transitórias. É essencial perseverar nas grandes diretrizes da nossa política externa, amparada sempre na Carta de 1988. Esta, recorde-se, fez constar entre os princípios a reger as relações internacionais do Brasil a busca da integração entre os povos da América Latina, orientação que nos cabe sublinhar, defender e concretizar. A abertura comercial foi, assim, um dos pilares do projeto de modernização da economia brasileira no meu governo. O mundo mudou muito desde então, mas a minha posição sobre a importância da abertura comercial para a atualização da nossa economia permanece essencialmente a mesma. Entendo que o Brasil precisa empreender novo ciclo de abertura comercial para avançarmos na melhoria da nossa estrutura produtiva, passo essencial na busca por melhores condições de redução das enormes desigualdades sociais e dificuldades que continuamos a enfrentar até hoje — afirmou Collor.
O senador ressaltou ainda que, no contexto atual, de virtual paralisia das negociações comerciais multilaterais, a estratégia com maior chance de efetividade para a ampliação do comércio internacional envolve o adensamento da rede de acordos extrarregionais do Mercosul. Em sua avaliação, o bloco, de maneira acertada, voltou a priorizar, nos últimos anos, sua vocação comercial original, perseguindo agora o seu fortalecimento por meio de agressiva adenda de negociações, entre as quais se destaca o Acordo de Associação com a União Europeia, cujas tratativas foram concluídas em junho de 2018.
— Os números superlativos dessa integração são amplamente conhecidos. Uma vez implementado, o acordo formará a segunda maior área de livre comércio do mundo e abarcará um quarto da economia mundial, com um PIB superior a US$ 20 trilhões e um mercado consumidor próximo a 800 milhões de pessoas. Trata-se de associação histórica. Será o acordo comercial de maior importância já concluído tanto por nós quanto pelos europeus, resultado de duas décadas de discussões, mas teremos ainda pela frente, é bom frisar, um penoso caminho a percorrer até a sua concretização. O Mercosul mantém negociações também com Coreia do Sul, Canadá, Singapura, México, Líbano, entre outros países. Esperamos todos que essa ampla agenda de oportunidades se concretize rapidamente — afirmou Collor.
Já Zélia Cardoso de Mello disse que a criação do Mercosul foi de extrema importância política e econômica, mas que, infelizmente, apesar do sucesso inicial em sua primeira década de sua existência, o bloco comercial perdeu um pouco a importância para o Brasil nos anos seguintes.
— A tentativa inicial de integrar as economias do Cone Sul começou com os presidentes [José] Sarney e [Raúl] Alfonsín, ou seja, um esforço de Brasil e Argentina. Essa iniciativa foi, depois, implementada no governo do presidente Collor e do presidente Menem, com a participação dos presidentes Lacalle, do Uruguai, e Rodríguez, do Paraguai. É importante ressaltar que, em democracias presidencialistas, como as nossas, a liderança do presidente para implementação e manutenção de qualquer acordo é fundamental — afirmou.
Zélia destacou ainda que, apesar de a ideia de união aduaneira e de free trade [livre comércio] estar presente desde o início na criação do Mercosul, a inspiração política teve muito peso.
— Depois de décadas de regime militar, nos quatro países e em outros da América Latina, a iniciativa tinha um caráter político, a saber: fortalecer o compromisso com a democracia e a gestão civil. Todos os presidentes citados, nos diversos países, foram eleitos democraticamente depois de décadas de ditadura. O tratado previa três fases. Entre 1991 e 1994, criar a Área Livre de Comércio, e isso foi criado dentro do prazo estabelecido. Em 1995, criar a união aduaneira, para uniformizar tarifas, e isso também foi implementado com sucesso, e, como consequência, por volta de 85% dos produtos tinham uma tarifa de apenas 11%. Em 2006, o objetivo era a criação do mercado comum, depois adiado para 2011 e, infelizmente, nunca implementado — afirmou.
Entre os motivos que levaram ao desinteresse do Brasil pelo Mercosul, Zélia citou a desvalorização do real, em 1999, com consequências desastrosas para a Argentina, e a crise argentina nos anos 2000; as crises financeiras na Ásia e na Rússia, no fim da década; e, paradoxalmente, a prosperidade do Brasil, nos anos seguintes.
— O crescimento do Brasil acabou resultando num certo desinteresse pelo Mercosul da parte da sua liderança. Nos anos 2000, o Brasil passou a ser considerado como mercado emergente. Em 2001, Jim O'Neill, do Goldman Sachs, criou o termo Bric, englobando Brasil, Rússia, Índia e China, dizendo que esses quatro países iriam dominar a economia mundial em 2050. O Bric se tornou uma organização da qual o Brasil faz parte, e a participação do Brasil no Bric possibilitou o incremento do comércio bilateral com os países do Bric. Essa fluência do Brasil no cenário internacional se refletiu na participação decrescente no comércio com o Mercosul. Só para se ter uma ideia, as exportações brasileiras, que eram cerca de 20% para o Mercosul em 1990, passaram a 5% em 2002 — disse.
Na avaliação da ex-ministra da Economia, o desinteresse pelo Mercosul, provocado pela possibilidade de o Brasil tornar-se um líder mundial com outras alianças comerciais mais produtivas, gerou uma situação que precisa agora ser resolvida.
— Eu acho que a liderança do Brasil nesse processo é fundamental. Foi fundamental no início, foi fundamental para a criação, para a implementação. Foi fundamental ter uma relação positiva entre os presidentes dos diversos países. E o Brasil deveria agora se comprometer inequivocamente para a continuação do desenvolvimento do Mercosul — concluiu.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, destacou a importância do Mercosul, dizendo que o Brasil falhou no passado ao não manter perseverança para a consolidação do bloco comercial, cujo papel deve agora ser reavaliado. Guedes defendeu a flexibilização dos acordos comerciais mantidos pelos membros do Mercosul, além da redução da TEC (Tarifa Externa Comum) em 10%.
— Nós até compreendemos a situação de membros que possam ter dificuldade de baixá-la no momento, mas nós gostaríamos de propor o movimento. Para o Brasil é importante. Nós achamos que é importante reduzi-la e fizemos uma proposta de reduzir apenas 10%. Quando você fala 10%, você tem uma tarifa de 30% de um produto específico, você está baixando de 30 para 27%. Isso aí não machuca ninguém. Isso aí é só para manter todo mundo aquecido, se não a turma acha que a economia vai continuar fechada. Nós temos que mandar um sinal falando: olha, nós estamos baixando um pouquinho todo mundo. É como se estivesse entrando numa esteira, fazendo um exerciciozinho, só para manter a forma física. Nós sempre dissemos para os nossos industriais que nós não íamos abrir de repente a economia brasileira, considerando que o industrial brasileiro tem uma bola de ferro na perna direita, que eram os juros de dois dígitos; uma bola de ferro na perna esquerda, que eram justamente os impostos excessivos; um piano nas contas, que são os encargos trabalhistas. Você não pode de repente abrir e falar: pode correr que o chinês vai te pegar. Você não pode abrir tudo de repente, de uma vez só, mas nós temos que mostrar que estamos indo nessa direção. E você mostra isso fazendo um pequeno passo inicial, baixando em 10% as suas tarifas e generalizadamente — disse Guedes.
Ex-ministro das Relações Exteriores no governo Collor, Francisco Rezek destacou que a criação do Mercosul foi produto de um governo que se instalava no Brasil após um período paraconstitucional que durou mais de vinte anos.
— Não queríamos onerar o Tesouro de quatro países não necessariamente ricos, não queríamos onerar esses países com um projeto de integração que custasse mais dinheiro aos cofres públicos do que o benefício que ele traria às suas devidas populações, por isso o Mercosul começou com condições tão discretas e tão modestas. O Mercosul começa sem personalidade jurídica, era um encontro periódico de chanceleres e de ministros da Fazenda. Só mais tarde ganha personalidade jurídica, tribunal arbitral de revisão. O Mercosul teve dez anos com passo mais expedito e vinte anos de relativa lentidão por força de diversos fatores. Convivíamos com mazelas típicas do subcontinente que nos distinguiam dos europeus — afirmou
Rezek destacou ainda que o Mercosul sofreu com a divisão entre os extremos da esquerda e os extremos da direita, “toda essa crise de identidade a que os povos são levados por força dessa fratura”.
— Talvez tenhamos perdido de vista o fato de que as coisas não se excluem, são perfeitamente conciliáveis nesse domínio, não estamos proibidos de desenvolver relação privilegiada do ponto de vista econômico com os Estados Unidos, China, Europa comunitária e o Brics. Tudo agrega, nada exclui. O Mercosul tem diante de si um futuro promissor, justamente na medida que ele não pretende excluir o privilégio de outras relações nossas com grupos econômicos ou países isolados que são importantes parceiros nossos por várias razões — afirmou.
Ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto Franco França disse que a atuação de Fernando Collor como presidente foi determinante na criação do Mercosul como hoje o conhecemos. Segundo ele, o compromisso de estreitar a relação e a promoção dos interesses nacionais, foi marco fundamental para inserção econômica do Brasil no mundo, com a superação de rivalidade com os países vizinhos e a adoção de uma visão de integração regional.
— O Mercosul nasceu como fruto da redemocratização. O bloco passou a reconhecer, na democracia e na liberdade, o pilar central de sua estrutura, a tal ponto que o tratado determina que a permanência de um membro no bloco depende do estrito respeito aos princípios democráticos. A atual suspensão da Venezuela é uma expressão concreta desse compromisso com a democracia.
O chanceler disse ainda que o Mercosul tem contribuído para ampliar o perfil internacional dos seus integrantes, além de conferir mais peso político e econômico ao Brasil e aos demais países-membros.
— Apesar disso, muitos criticam o Mercosul por estar ainda aquém da meta ambiciosa de formação de um mercado comum fixada pelo Tratado de Assunção.
É fundamental, porém, lembrarmos que somos um bloco integrado por países em desenvolvimento com estruturas econômicas distas. Nossos países são sujeitos a padrões cíclicos de crescimento muitas vezes divergentes entre si. Torna-se assim particularmente complexa, desafiadora e necessariamente gradual a tarefa de levar adiante um projeto de integração profundo.
O ministro disse ainda que o Brasil quer dar continuidade às negociações comerciais externas em curso e abrir novas frentes negociadoras com o Mercosul, lançando mão, quando necessário, “de flexibilidades que assegurem que os tempos e sensibilidades de alguns não prejudiquem o desejo dos demais de avançar”.
— Manter o Mercosul vivo e relevante implica adaptá-lo e renová-lo de acordo com as necessidades ditadas pela atualidade. Movido por essa percepção, o Itamaraty segue fortemente comprometido com o processo de integração regional do qual o Tratado de Assunção foi a pedra fundamental — concluiu.