A nova edição do relatório anual sobre a situação dos Direitos Humanos em quase 200 países, publicada pelo Departamento de Estado norte-americano na terça-feira (30/1), referenda o que organizações não-governamentais e órgãos de imprensa globais vêm seguidamente apontando: o crescimento das ameaças à liberdade de imprensa no Brasil.
Problemas crônicos do Brasil descritos no estudo, como a situação carcerária e de direitos trabalhistas, não são novidade. Mas no que diz respeito à liberdade de imprensa, a edição deste ano tem uma diferença importante em relação a 2019. Ela atribui ao próprio presidente atos antidemocráticos e ataques à imprensa, um fato notório considerando que o país há muito saiu de um regime de exceção.
E uma violação que vem da liderança do país alcança outro patamar. Na edição de 2019 do relatório, publicada em 2020, havia menções a ameaças à liberdade de imprensa, mas não havia atribuição ao Presidente ou ao governo federal.
No relatório dedicado ao país, o documento abre afirmando que “a constituição e a lei prevêem a liberdade de expressão, inclusive para a imprensa, mas o governo nem sempre respeitou esse direito.”
A redação é a mesma desde 2019. Mas até 2018, o texto inicial do documento (que conserva a mesma estrutura ano a ano) dizia: “o governo geralmente respeita esse direito”. Ou que “não havia sinais de que o Governo estivesse desrespeitando esse direito. “
A importância do relatório é significativa. Pela legislação americana, ele tem que ser submetido ao Congresso pelo Departamento de Estado. A lei exige que a política externa e comercial dos EUA leve em consideração os ‘direitos humanos e desempenho dos direitos dos trabalhadores” reportados pelo Departamento.
Na prática, não há um efeito imediato sobre comércio ou relações diplomáticas, pois existem muitos interesses em jogo. Mas o documento é referência para a diplomacia e para organizações de todo o mundo. E contribui para formar uma reputação negativa que pode influenciar relacionamentos comerciais ou investimentos.
O trabalho é produzido com base em fontes diversas: embaixadas e consulados dos Estados Unidos no exterior, funcionários de governos estrangeiros, organizações não governamentais e internacionais, juristas, jornalistas, acadêmicos e ativistas. As missões diplomáticas prepararam os relatórios iniciais, que depois são revisados, verificados e aprofundados.
Entre os aspectos dos direitos humanos avaliados está a liberdade de expressão. O documento investiga se ela é respeitada, inclusive para a mídia. E descreve restrições diretas ou indiretas, incluindo intimidação de jornalistas e censura.
Na introdução do relatório sobre o Brasil, o documento faz um panorama da situação do país:
Questões significativas de direitos humanos incluem relatos de assassinatos ilegais ou arbitrários cometidos pela polícia; condições carcerárias severas e, às vezes, com risco de vida; prisão ou detenção arbitrária; violência contra jornalistas; atos generalizados de corrupção por parte de funcionários; falta de investigação e responsabilização da violência contra a mulher; violência ou ameaças de violência motivadas pelo antissemitismo; crimes envolvendo violência ou ameaças de violência contra membros de minorias raciais, direitos humanos e ativistas ambientais, povos indígenas e outras populações tradicionais e pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros ou intersex.
O capítulo Liberdade de Expressão começa documentando a violência e o assédio a profissionais de imprensa:
“Jornalistas foram mortos ou submetidos a assédio, ataques físicos e ameaças como resultado de suas reportagens. Em maio, o jornalista Leonardo Pinheiro foi assassinado durante uma entrevista em Araruama, no Estado do Rio de Janeiro. Até outubro, as autoridades não haviam identificado nenhum suspeito ou motivo.”
O Departamento de Estado afirma que a exemplo de anos anteriores, as agressões físicas mais graves ocorreram com mídias regionais. E cita o caso do apresentador Alex Mendes Braga, “que em julho foi forçado a sair da estrada em Manaus (AM), agredido fisicamente e ameaçado em aparente retaliação por sua recente cobertura de suspeita de fraude em um hospital local.”.
O relatório menciona ataques relacionados à Covid-19:
“Vários jornalistas foram submetidos a agressões verbais, incluindo quando indivíduos sem máscara gritaram na cara deles após o início do Covid-19. O incidente de maior visibilidade ocorreu fora do palácio presidencial em Brasília, levando uma coalizão de organizações da sociedade civil a abrir um processo civil contra o governo por não proteger os jornalistas no local. Desde agosto, vários veículos importantes pararam de enviar jornalistas para cobrir eventos fora do palácio. E o palácio tomou medidas adicionais para manter os jornalistas separados dos civis reunidos do lado de fora.”
Dados da Repórteres sem Fronteiras sobre o presidente Bolsonaro foram registrados no documento:
“Segundo a RSF, o presidente Jair Bolsonaro criticou a imprensa 53 vezes, verbalmente ou por meio das redes sociais, durante o primeiro semestre. Diversos meios de comunicação informaram que, em 23 de agosto, o presidente Bolsonaro atacou verbalmente um repórter do O Globo , que o questionou sobre os depósitos feitos pelo ex-assessor Fabricio Queiroz para sua esposa, Michelle Bolsonaro.
A ação de forças policiais durante manifestações também mereceu críticas:
Em casos de violência perpetrada por manifestantes ou provocadores durante manifestações em massa, houve casos em que forças de segurança feriram jornalistas durante operações de controle de multidões.
Em junho, dois jornalistas do jornal local Em Questão de Alegrete, no Rio Grande do Sul, foram agredidos por dois policiais militares depois que um dos repórteres tentou fotografar um caminhão do exército em frente à delegacia de polícia da cidade. Os policiais proibiram o repórter de tirar fotos, apreenderam seu celular e o chutaram e algemaram. Após uma investigação, em agosto a polícia civil encaminhou os dois policiais para processo por agressão e abuso de autoridade.
O Departamento de Estado americano lembrou que as leis nacionais proíbem a censura judicial com motivação política. Mas registrou a existência de casos de censura judicial. O exemplo citado é de 30 de julho, quando um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que o Facebook e o Twitter bloqueassem várias contas por terem divulgado “notícias falsas”.
E finalizou apontando que os problemas extrapolam as fronteiras do Governo:
“Elementos criminosos não governamentais sujeitaram jornalistas à violência devido às suas atividades profissionais.”
O relatório completo sobre o Brasil pode ser lido (em inglês)aqui.
A exposição negativa em consequência do documento divulgado na terça-feira não é um caso isolado. Problemas envolvendo liberdade de imprensa no Brasil têm sido destaque em pesquisas como um da Repórteres sem Fronteiras medindo o impacto do sexismo sobre o trabalho das mulheres jornalistas, no qual o país figura entre os 40 mais perigosos para elas.
Ou o Global Expression Report 2020 da Article 19, que registrou declínio na liberdade de expressão no Brasil entre 2019 e 2020. O estudo registrou que naquele período, 43 jornalistas foram mortos no Brasil. E que os ataques se intensificaram depois da campanha presidencial de 2018.
O país aparece como uma das nações em que tropas ciberbnéticas financiadas pelo Estado espalham desinformação, que inclui discurso contrário à imprensa, em estudo do Oxford Internet Institute. E nenhum outra nação mereceu a “honra” de ser tema de uma campanha mundial da Repórteres Sem Fronteiras, que em janeiro lançou a “Verdade Nua” em quatro idiomas, em repúdio aos ataques do Presidente Bolsonaro contra jornalistas.
Na mídia global o quadro não é melhor. Matérias sobre temas negativos como o descontrole da pandemia, a destruição ambiental e a crise política brasileira não são novidade.
Recentemente, no entanto, notícias sobre os embates do Presidente e de integrantes de seu círculo mais próximo com jornalistas, como as recentes decisões judiciais em favor de Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, passaram a ocupar espaços cada vez mais generosos em veículos de grande influência. E constroem um quadro triste da liberdade de imprensa no Brasil.
O Brasil está em 107º no ranking da entidade, divulgado anualmente. Na edição 2021 essa posição pode até piorar, pois os problemas agravaram-se depois da pandemia. Na avaliação, a entidade destaca o fato de muitos dos ataques serem relacionados à cobertura de corrupção, políticas públicas e crime organizado.
Com ameaças e ataques físicos, o Brasil continua a ser um país especialmente violento para a mídia, e muitos jornalistas foram mortos em conexão com seu trabalho. Na maioria dos casos, esses repórteres, apresentadores de rádio, blogueiros ou provedores de informação de outro tipo cobriam histórias relacionadas à corrupção, às políticas públicas ou ao crime organizado em cidades pequenas ou médias, onde são mais vulneráveis.
A eleição de Jair Bolsonaro como presidente em outubro de 2018, após uma campanha marcada por discurso de ódio, desinformação, violência contra jornalistas e desprezo pelos direitos humanos, deu início a uma era particularmente sombria para a democracia e a liberdade de imprensa no Brasil.
O presidente Bolsonaro, sua família e vários membros de seu governo insultam e humilham constantemente alguns dos principais jornalistas e meios de comunicação do país, alimentando um clima de ódio e desconfiança em relação ao jornalismo no Brasil. A propriedade dos meios de comunicação continua muito concentrada, especialmente nas mãos de famílias de grandes empresários que costumam estar intimamente ligadas à classe política. A confidencialidade das fontes dos jornalistas está sob constante ataque e muitos repórteres investigativos foram submetidos a procedimentos judiciais abusivos.