Documentos vazados por hackers, publicados em artigo de Max Bluementhal no The Grayzone em fevereiro, mostram que BBC e Reuters participaram de programas secretos do Ministério das Relações Exteriores (FCO) do Reino Unido. Através de campanhas de desinformação, os programas pretenderam enfraquecer a influência regional da Rússia, bem como minar a autoridade e desestabilizar o governo Putin. O governo britânico faz assim pleno uso de táticas da guerra híbrida, que o Ocidente tanto acusa a Rússia de praticar. A atuação do governo britânico se deu através do Departamento de Contra Desinformação e de Desenvolvimento de Mídia (CDMD, na sigla em inglês), cujas atividades são consideradas de segurança nacional. O CDMD/FCO fez uma convocação aos veículos de comunicação interessados em atuar para “conter a narrativa do governo russo”, e “enfraquecer a influência da Rússia junto aos países vizinhos”. BBC e Reuters submeteram propostas ao CDMD de estabelecer redes de influência na Rússia e países vizinhos que promovessem narrativas favoráveis a OTAN. Porta-voz da Reuters confirmou a autenticidade dos documentos, argumentando, no entanto, que as atividades não seriam secretas, e que faziam parte de um “trabalho de décadas em prol da imprensa livre a nível global”.
A Reuters já fora secretamente financiada pelo governo britânico para colaborar em propaganda anti-soviética nas décadas de 60 e 70, em atuação com o serviço de inteligência M16. A informação consta de documentos oficiais que tiveram o acesso liberado em janeiro de 2020. A BBC atuou como intermediária nos pagamentos à Reuters.
Ambos os veículos de mídia declararam que o que acontecera anteriormente não mais se repetiria, pois seus princípios são fundamentados na independência e na verdade. Os novos vazamentos mostraram exatamente o contrário. Cada vez mais, BBC e Reuters vêm desempenhando um papel agressivo na demonização de governos que não seguem a cartilha imposta por Washington e Londres.
Um exemplo da cooptação da mídia, incluindo a Al Jazeera, foi revelado em outro vazamento pelo grupo de hackers Anonymous, relatado pelo Grayzone em setembro de 2020. O vazamento expôs a ação de propaganda do FCO do Reino Unido visando angariar apoio para remover Assad do poder na Síria. O mesmo grupo hacker estaria envolvido nos novos vazamentos.
A Reuters é o setor de notícias e mídia da Thomson Reuters, a maior agência internacional de multimídia. A empresa privada está sediada em Nova Iorque, e resultou da aquisição da britânica Reuters pela canadense Thomson Corporation.
Em 2017, a Fundação Thomson Reuters submeteu uma proposta formal para participar de um contrato confidencial com o FCO, que envolvia a embaixada britânica em Moscou. Tratava-se de um projeto de capacitação da mídia russa, através de um “programa de visitas temáticas de jornalistas e influenciadores digitais russos” ao Reino Unido. A meta pretendida era de promover nos jornalistas “um impacto positivo na percepção do Reino Unido”.
Em 2019, a Reuters ingressou em programa semelhante, com o objetivo de “conter a narrativa do governo russo e sua dominação da mídia e dos meios de informação”. O plano do governo britânico era de se infiltrar na mídia russa para propagar sua própria narrativa através dos jornalistas russos treinados no Reino Unido.
A Reuters organizou então mais visitas de jornalistas russos, para promover “os valores políticos e culturais do Reino Unido”. A Reuters proclama ter influenciado cerca de 400 jornalistas russos através de seus programas de visitas, e de contar com 1.500 jornalistas em sua rede global de influência.
Como parte de suas atividades de desinformação, a Reuters manteve ligações com o canal de televisão Belsat, da Bielorússia. O canal tem base na Polônia e recebe fundos de governos da União Européia. Belsat teve um papel preponderante na promoção dos protestos de maio de 2020 pela saída do presidente Alexander Lukashenko.
A britânica BBC consiste na maior emissora pública internacional, e se apresenta como imparcial e independente. Através do setor BBC Media Action, a emissora estatal se propôs a participar de um programa secreto do CDMD/FCO britânico, de 2019 a 2022, voltado para conter a influência russa na região Báltica por meio de novos veículos de mídia pretensamente independentes, mas que promoveriam posicionamentos pró-OTAN.
A BBC se interessou em participar de outro programa de propaganda na mídia, com foco na Ucrânia, Moldávia e Geórgia. Seria formado um consórcio, que incluiria a Reuters e uma empresa de inteligência não mais existente, a Atkins Strategy.
A BBC Media Action também propôs desenvolver, junto com a Atkins, um trabalho pró-OTAN na guerra de informação em áreas de conflito, como na região de Donbas, leste da Ucrânia, onde ocorriam choques dos separatistas pró-Rússia com as forças militares do governo apoiado pelo Ocidente.
Dentre as empresas de inteligência que se inscreveram para participar do Consórcio custeado pelo CDMD/FCO britânico estavam a Albany Communication e a Zinc Network.
Segundo relato de Ben Norton no Grayzone, a Albany já atuara junto a setores de mídia para propagar as narrativas do Ocidente, enquanto OTAN e as monarquias do Golfo Pérsico procuravam forçar uma mudança de regime de na Síria.
A Zinc teve participação anterior em projetos clandestinos de mídia junto a comunidades mulçumanas, tanto no Reino Unido como na Austrália, como parte de estratégias de contraterrorismo. A Zinc buscou apoio para a Mediazone, um veículo de mídia anti-Putin fundado por duas participantes do grupo performático feminista de punk rock, Pussy Riot (assista a performance Reza Punk no vídeo).
A Zinc se propôs também a reduzir a visibilidade nas buscas no Google, do site RT (ex-Russian Television), apoiado pelo governo russo. O recente vazamento também revelou que a Zinc propusera atuar no Consórcio, para ajudar influenciadores digitais a “desenvolverem estratégias editoriais no YouTube”. O objetivo era o de estabelecer uma rede de YouTubers na Rússia e na Ásia Central, que promovesse de forma camuflada a visão do Reino Unido e dos países da OTAN, enquanto pretendendo atuar na “promoção de valores democráticos e de integridade da mídia”.
Um nome que aparece relacionado aos documentos vazados é o de Vladimir Ashurkov, diretor executivo da Fundação Anti-Corrupção, FBK, capitaneada por Alexei Navalny. Navalny é opositor de Putin e o queridinho da mídia Ocidental, apesar de sua pouca representatividade política na Rússia; ele é também conhecido por seu discurso de ódio e por suas posições racistas e xenófobas (ver artigo no Chacoalhando).
Em 2013, Ashurkov foi filmado em encontro com um agente do M16 da inteligência britânica, em que o russo solicita de 10 a 20 milhões de dólares por ano, para modificar o cenário político. Pouco tempo depois, Ashurkov buscou asilo no Reino Unido.
Em 2018, o nome de Ashurkov apareceu em documentos vazados divulgados pelo Grayzone, em conexão com a rede de influência Integrity Iniciative, ligada ao FCO britânico. O grupo de propaganda clandestina, composto por militares da inteligência, atuava através de influenciadores britânicos na mídia e na política. O objetivo era de estigmatizar ao máximo a Rússia por suas “intenções malignas”, e aumentar as tensões entre o Ocidente e a Rússia.
Outro parceiro da rede da Zinc no Consórcio exposto pelo vazamento de 2021 é o site Bellingcat. O site já havia interagido com Navalny para culpar a inteligência russa pelo envenenamento do opositor de Putin com o gás neurológico Novichok, conforme relatado pelo Grayzone.
Bellingcat esteve envolvido nas eleições na Macedônia do Norte, promovendo o candidato pró-OTAN, que saiu vencedor. A tática empregada incluiu acusar a Rússia de interferência nas eleições na Macedônia. Também participou da campanha de desinformação na Macedônia, o DFRlab, vinculado ao Atlantic Council, entidade que atua de forma obscura na promoção dos interesses norte-americanos.
O artigo do Grayzone menciona que Bellingcat recebe fundos da NED, National Endowment for Democracy, entidade privada norte-americana, bancada em grande parte pelos partidos Republicano e Democrata. A NED atua na promoção de mudanças de regime político em diversos países, como fez no Brasil no governo Dilma, através da Atlas Network.
Com a veracidade dos documentos vazados plenamente comprovada, ficaram comprometidas as pretensas imparcialidade e independência da BBC e da Reuters. As duas corporações são frequentemente fontes de matérias publicadas em veículos de imprensa em diversos países. Como confiar agora na autenticidade destas matérias?
O autor é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.