Em 17 de dezembro de 2010, o ambulante tunisiano Mohamed Bouazizi colocou fogo em si mesmo para protestar contra a pobreza e falta de perspectiva em seu país. Esse ato de revolta gerou uma revolução na Tunísia, dando início ao que se convencionou chamar de "Primavera Árabe".
Posteriormente, protestos na Praça Tahrir exigiram a renúncia do então presidente do Egito, Hosni Mubarak, colocando fim a trinta anos de ditadura no país.
O próximo líder a cair seria o líbio Muammar Kadhafi, em caso que marca o início das intervenções estrangeiras abertas nas revoluções do mundo árabe.
A violência seria a tônica dos casos subsequentes, o mais sério deles identificado na Síria, onde mais de meio milhão de pessoas morreram em confrontos militares.
"Aqui no mundo árabe não consideramos que os acontecimentos tenham sido uma 'Primavera' [...] mas com certeza foi uma revolta contra a má gestão e sistemas políticos ultrapassados", disse o ex-secretário-geral da Liga Árabe, Amr Musa, durante debate promovido pelo Clube Valdai de Discussões Internacionais, nesta quarta-feira (10), em Moscou.
"A Primavera Árabe foi gerada por um processo global [...] no qual toda a energia de mudança atingiu as ruas. As massas se tornaram atores das mudanças", disse o diretor do Departamento de Estudos Orientais da Academia de Ciências da Rússia, Vitaly Naumkin.
Atualmente, "esse processo atingiu praticamente todos os países do mundo, incluindo os EUA", disse Naumkin. "Isso sem dúvida está ligado à Internet e às mídias sociais."
Passados dez anos de seu início, os resultados da chamada "Primavera Árabe" são bastante contraditórios.
"Os resultados preliminares destes eventos polêmicos, infelizmente, não são positivos", acredita o subsecretário do Departamento do Oriente Médio e Norte da África do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Aleksei Skosyrev.
"O conflito constante na região gerou muitos problemas socioeconômicos [...] além de 'zonas cinza' de poder, fora do controle das autoridades locais."
De acordo com ele, o aumento no fluxo de refugiados, da insegurança regional e do tráfico de drogas local também seriam resultados negativos da "Primavera".
"Se a intenção da Primavera Árabe era eliminar a corrupção mudando a elite governante para melhorar as condições socioeconômicas, esses objetivos não foram atingidos", acredita Skosyrev.
De acordo com Naumkin, a região foi reformulada, uma vez que "países que eram considerados a base do arabismo como, Síria, Egito e Iraque, hoje encontram-se em situação muito delicada".
"Enquanto isso, países não árabes estão liderando a região, como Turquia, Irã e Israel", notou o especialista.
O papel de destaque de Israel já se concretiza com a sua aproximação a países do golfo Pérsico, como os Emirados Árabes Unidos (EAU).
"Mas até que haja um plano concreto para o estabelecimento de um Estado palestino, é muito cedo para falar em sucesso de Israel na sua inserção na região. Mas uma paz ruim é melhor do que uma boa briga", disse Naumkin em resposta à pergunta da Sputnik Brasil.
A paz pode ser um objetivo ainda mais remoto, considerando o aumento do radicalismo na região após o início da primavera.
"O papel de grupos como o Daesh e da Al-Qaeda [organizações terroristas proibidas na Rússia e demais países] foi suprimido [...] mas ainda não completamente eliminado", lamentou Naumkin.
A paz também dependerá do posicionamento de atores externos, cujo papel na região tampouco retrocedeu após o início das revoltas.
"Alguns atores internacionais que atuam na região [...] parecem querer deixá-la em uma situação constante de 'caos controlado' para atingir seus objetivos geopolíticos", disse o diplomata Skosyrev.
De acordo com a pesquisadora da Universidade Johns Hopkins (EUA), Randa Slim, a Primavera Árabe pode ser dividida em duas fases.
"Tivemos duas ondas de protestos: a primeira [...] ocorreu entre 2010 e 2011 em países como Tunísia, Iêmen, Líbia e Síria. Em seguida, temos a onda de 2019, que engloba Sudão, Argélia, Iraque e Líbano", disse Slim durante o debate.
Segundo ela, as motivações dos protestos são as mesmas: "pobreza, desemprego, injustiça econômica, corrupção, má gestão e repressão".
Mas os manifestantes da segunda onda teriam extraído algumas lições da primeira, que levou a graves conflitos militares.
"Vemos uma menor influência dos partidos islâmicos na segunda onda [...] e mais destaque para jovens, mulheres e ativistas da sociedade civil", disse Slim.
A segunda onda também teria um caráter "menos ideológico", com ativistas evitando "cair na armadilha sectária".
"Eles estão sofisticando suas táticas não violentas de protesto", notou Slim. "São lições aprendidas a partir das experiências da Síria, Líbia e Iêmen."
Os especialistas acreditam que os indicadores socioeconômicos e a perseverança de conflitos militares no Oriente Médio indicam que novos protestos podem voltar a sacudir a região.
"A Primavera Árabe tende a se replicar", disse Slim. "Depois do verão, outono e inverno, a primavera sempre volta."
Nesta quarta-feira (10), especialistas em Oriente Médio se reuniram em evento promovido pelo Clube Valdai de Discussões Internacionais para debater os resultados da chamada "Primavera Árabe" e as perspectivas para a região.