Das muitas imagens chocantes das enchentes de maio de 2024 , que arrasaram o Rio Grande do Sul , a inundação do Mercado Público de Porto Alegre , o mais antigo do Brasil, está entre as mais marcantes .
As águas do Guaíba começaram a invadir o prédio icônico da capital gaúcha ainda na manhã do dia 3 de maio daquele ano , obrigando os comerciantes a fecharem as lojas rapidamente.
Aquelas águas subiriam por mais de 1,5 metro de altura , superando a enchente de 1941, até então a maior já vista.
Ninguém imaginava a dimensão da catástrofe e as perdas foram quase totais .
"Quando avisaram que a água ia subir, todo mundo basicamente fechou as bancas, algumas pessoas tiraram algumas coisas e nós erguemos balanças, produtos e outros equipamentos a cerca de um metro do chão", conta Carolina Kader, proprietária de uma loja de insumos e artigos para confeitaria no mercado.
"Era uma sexta-feira, a gente achou que voltaria no fim de semana pra limpar, a água teria baixado, e reabriríamos normalmente na segunda", relata.
Ela só conseguiria retornar, assim como todos os demais permissionários, no dia 29 de maio, quase um mês após a inundação do ano passado.
O Mercado Público só começaria a reabrir de forma gradual em meados de junho , após 41 dias de fechamento.
Inaugurado em 1869, o local tem 155 anos de existência. Além de ser o principal centro de abastecimento de alimentos da cidade, o prédio é um ponto turístico, sobretudo pela atividade gastronômica .
Localizado no centro histórico da cidade, oferece opções de alimentos in natura , como carnes, peixes, frutos do mar e frutas, bem como produtos de confeitaria, vinhos, erva-mate, artigos religiosos, e pratos e lanches em restaurantes e bares.
"Quem visita uma cidade e quer conhecer um pouco da cultura daquele lugar, é no Mercado Público que ele vai entender. Aqui é uma expressão das tradições gaúchas", afirma Jefferson Sauer, sócio da Banca 43, que tem 70 anos de história e vende queijos, vinhos, azeites, linguiças e embutidos.
Sauer, que é vice-presidente da Associação dos Permissionários do Mercado Público de Porto Alegre, celebra o fato de que, após uma crise tão extrema, todas as bancas conseguiram resistir e seguir adiante .
Ao todo, são 102 permissionários.
"São cerca de 800 empregos diretos", aponta o empresário.
No Mercado Público, a variedade de produtos e especiarias é um dos diferenciais.
"O cliente chega e pode escolher aquele corte específico, se orienta sobre a melhor parte de um bacalhau de acordo com o prato que ele quer fazer", diz Ronaldo Pinto Gomes, um dos coordenadores da administração do prédio pela prefeitura.
Além disso, destaca o gestor, todo mundo tem o que comprar ali.
"É o espaço mais democrático que existe nessa proposta de abastecimento de alimentos. Você encontra tainha a R$ 11 o quilo e também os queijos, vinhos e azeites mais sofisticados da cidade. Cerca de 60% dos frequentadores são trabalhadores de renda modesta", acrescenta Gomes.
Essa característica tem muito a ver com o fato de o Mercado Público estar localizado quase em frente a uma das estações da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb), que conecta o centro da cidade com toda a região metropolitana , passando por cidades como Canoas, São Leopoldo, Esteio e Novo Hamburgo.
São mais de 110 mil usuários por dia.
Após as enchentes, o Trensurb ficou fechado por 7 meses, o que impactou a economia do mercado e de toda a região central da capital gaúcha.
"Uma fração significativa desse fluxo passa pelo mercado, acaba comprando alguma coisa", explica Ronaldo Gomes.
Estima-se que o Mercado Público receba cerca 40 mil visitantes por dia .
"Nos tempos gloriosos, eram mais de 80 mil por dia", conta Jefferson Sauer.
A pandemia já havia mudado o contexto de ocupação do centro histórico, com redução da presença de empresas, bancos e outras corporações. A crise das enchentes acelerou esse processo.
"A gente tem hoje aqui no centro cerca de 5 mil imóveis desocupados. Então, acredito que a partir da ocupação desses imóveis, no contexto de uma revitalização da área central, do cais do porto, com formatos novos de ocupação, a gente possa recuperar esse público", aposta o empresário.
Quem também voltou foi Vera Regina dos Santos, ex-moradora da capital, mas que atualmente reside em Nova Araçá, na Serra Gaúcha.
A reportagem da Agência Brasil conversou com a aposentada quando ela estava entrando no mercado pela primeira vez depois da reabertura após a enchente.
"Aqui, sempre foi para mim o meu ponto central de Porto Alegre, eu adoro vir aqui comprar peixe, frutas, chás e legumes", revelou.
Não há uma estimativa global dos prejuízos entre os permissionários do mercado .
Carolina Kader aponta que a catástrofe causou perdas de R$ 700 mil em produtos e equipamentos em sua banca de confeitaria.
Para amenizar a situação, a prefeitura concedeu desconto de 50% no pagamento da mensalidade das lojas a todos os permissionários .
Mesmo assim, ela avalia que as vendas estão 40% menores que o período anterior, que já vinha ainda repercutindo as baixas causadas pela pandemia de covid-19.
No entorno do Mercado Público, a situação é parecida. Marcellus Gomes, dono de uma lanchonete na Praça XV de Novembro, ainda não sente uma recuperação plena .
"Tem muita gente na cidade que perdeu todas as coisas de casa, tem que comprar tudo de novo e não sobra para gastar na rua", avalia.
Próximo dali, uma farmácia que ficou completamente arrasada pela inundação já visualiza um cenário mais positivo .
"Até dezembro, foi muito ruim de vendas. Agora, na Páscoa, foi uma virada. Estamos vendendo esse mês 15% a mais que eu vendi em abril do ano passado", diz o gerente Marcelo Barbosa de Souza.
Segundo a Fecomercio do Rio Grande do Sul , com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), após as enchentes, o comércio encolheu mais de 14% até dezembro do ano passado no estado.
A atividade comercial se manteve nesse patamar até fevereiro deste ano.
As enchentes deixaram 184 mortos e, até o momento, 26 pessoas seguem desaparecidas no estado.