A bancada ruralista não conseguiu engolir quieta a prova do Enem deste domingo. Assim que foram reveladas as questões, a Frente Parlamentar da Agropecuária começou a redigir uma carta dizendo que o agro estava sob ataque do governo. O cerne eram três questões da prova branca, em que os alunos precisavam interpretar textos e uma charge.
Os textos não eram propaganda ideológica, mas continham críticas ao modelo de negócios de fazendeiros e ao capitalismo como um todo. Algo absolutamente normal na Sociologia e na Geografia, as disciplinas a que as questões pertenciam. Exemplo: um dos textos falava que a plantação de soja é um dos fatores do desmatamento das florestas. Bom, quem há de negar isso? O fenômeno, além de bem documentado, é evidente.
A charge era uma brincadeira não com o agro, mas sim com a ideia de colonização e tomada de terras. Um indígena alerta alienígenas sobre aqueles homens que saíram da Terra para explorar novos planetas: melhor não confiar neles. Tem tudo a ver com o Marco Temporal, claro. Mas então os alunos não podem acompanhar uma questão sobre o marco temporal?
O texto mais forte questionava o próprio modelo de produção capitalista. Partindo da exploração do Cerrado e (justamente) de uma discussão sobre como os reis do agro acabam influenciando o conhecimento nas terras por ele dominadas (um tipo claríssimo de doutrinação), o autor fala sobre como a fábrica em que o campo se tornou termina por afetar tudo e todos.
A carta da bancada pretende influenciar o Enem e o ensino brasileiro como um todo. A ideia parece, novamente, ser aquela do Escola sem Partido. A educação deveria se resumir ao ensino de disciplinas fundamentais para que o cidadão seja funcional em sociedade (Português, Matemática), e se afastar de qualquer discussão sobre o mundo.
Mais do que isso, pretende impor a visão do agro, assim como, segundo um dos textos, vem fazendo no Cerrado. “O setor agropecuário representa toda a diversidade da agricultura: pequenos, médios e grandes. Somos um só e não aceitaremos a divisão para estimular conflitos agrários”, diz a carta.
O texto dá a entender que essa é a única visão possível e que quaisquer contestações devem não apenas ser evitadas, mas banidas da educação brasileira. Não é uma ideia nova: antes da implantação da democracia no Brasil, tão recente, eram de fato os coronéis (o que é outra forma de dizer “o agro”) que mandavam nas escolas de sua região.
Recentemente, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) disse com todas as palavras que pretendia impedir pessoalmente o uso de questões no Enem consideradas inadequadas por ele e por seus amigos – entre eles, claro, os ruralistas.
Os donos do dinheiro sempre querem perpetuar seu poder, tanto econômico e político. E sabem que a maior brecha para que esse poder seja erodido é a educação. Por isso a voz dos ruralistas vai sempre subir de tom quando os professores disserem algo que lhes desagrade.
Nem por isso, a prova do Enem deve mudar. Pelo contrário. É papel das ciências, especialmente das ciências sociais, fornecer ferramentas para que os estudantes pensem sobre o mundo no qual vivem.
Se o agro quer pagar milhões a redes de tevê para dizer que “é tudo, é tech, é pop”, faz parte do jogo. Mas querer meter o dedo na educação alheia é simples desprezo pela escola, pelos professores e pela democracia. E isso, sim, é inaceitável.
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