As relações entre Brasil e Alemanha andam estremecidas há anos. Pouco tempo após entrar para o seleto grupo de parceiros estratégicos de Berlim, Brasília passou a ser evitada pelo país europeu. Durante os quatro anos que esteve no poder, Jair Bolsonaro não recebeu nenhuma visita de um chanceler federal alemão, tampouco foi convidado para vir a Berlim. Já cooperações estratégicas foram suspensas pelo governo alemão.
No entanto, desde a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, a Alemanha vem ensaiando uma reaproximação com seu parceiro mais importante na América Latina. A visita do chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, ao Brasil, que ocorre na próxima segunda-feira (30/01), é mais um sinal desse interesse. É a segunda viagem de uma delegação alemã ao país em menos de um mês, após a presença do presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, na posse de Lula.
Mas depois de um período turbulento, o caminho para restabelecer os antigos laços pode ser mais difícil do que aparenta à primeira vista. "A eleição de Lula foi vista com um alívio na Alemanha, mas pode ser uma armadilha, pois as coordenadas mudaram com o governo Bolsonaro. Além disso, a Alemanha e a Europa vão enfrentar uma grande concorrência com a China. Não dá para continuar com o antigo projeto e a receita antiga, é preciso uma nova proposta para se encontrar um novo interesse comum", avalia o cientista político Günther Maihold, diretor interino do Instituto Alemão para Política Internacional e Segurança (SWP).
Parceira histórica
Os laços entre Brasil e Alemanha vêm de longa data. O século 19 marcou o auge da migração alemã para o país latino-americano. Nesse período também foram estreitadas as relações comerciais e econômicas. A Alemanha era na época um dos principais compradores de açúcar e café do Brasil, e também importava tabaco, algodão e couro.
No fim do século 19, algumas empresas alemãs se estabeleceram no país, como a Siemens, em 1895, e a Bayer, em 1896. Com as guerras mundiais, houve um rompimento nas relações bilaterais, mas que retornaram com toda a força a partir da década 1950, quando grandes empresas da Alemanha, como Volkswagen e BASF, abriram fábricas no Brasil. E, assim, São Paulo tornou-se o maior polo industrial alemão fora do país.
No âmbito político, nos anos após a Segunda Guerra Mundial, os países assinaram diversos acordos de cooperação – em energia nuclear, agricultura, economia, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, preservação de florestas e coprodução cinematográfica. Essa relação alcançou um novo patamar em 2008, quando a então chanceler federal alemã Angela Merkel e o então presidente Lula assinaram um plano de parceria estratégica, algo inédito entre os países da América Latina.
Essa parceria visava aprofundar cooperações ambientais, energéticas, nas áreas de defesa, segurança, ciência e tecnologia, em questões sociais e ligadas ao trabalho, desenvolvimento sustentável e direitos humanos. Buscava-se ainda uma atuação mais afinada em rodadas internacionais como as que ocorrem no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente em relação à estrutura do Conselho de Segurança.
Esse foi o primeiro passo para uma cooperação maior. Em 2015, os dois países chegaram a promover as primeiras Consultas Intergovernamentais de Alto Nível Brasil-Alemanha. Na época, apenas dez países faziam parte do seleto grupo de parceiros mais próximos de Berlim: França, Espanha, Itália, Polônia, Israel, Rússia, China, Índia, Tunísia e Holanda. Merkel esteve em Brasília com uma comitiva de ministros e secretários que se reuniram com seus homólogos brasileiros. Ao fim do encontro, foram previstas novas rodadas de conversas neste âmbito a cada dois anos, mas isso nunca aconteceu.
"É uma política simbólica. Esse formato prevê não somente uma viagem de uma delegação com chanceler, mas encontros frequentes do alto escalão governamental para tratar de temas importantes para ambos os países. Desde o impeachment de 2016, a Alemanha viu a situação no Brasil como preocupante e manteve o distanciamento", afirma o cientista político Peter Birle, diretor científico do Instituto Ibero-Americano.
O estremecimento das relações bilaterais começou após o impeachment de Dilma Rousseff. Em 2017, Merkel esteve na América Latina, visitando Argentina e México, mas evitou passar pelo Brasil. A relação, que já estava abalada, esfriou ainda mais durante o governo Bolsonaro.
"As relações internacionais, no geral, sofreram no governo Bolsonaro, devido à sua radicalidade, ao descuido com a política ambiental e à promoção de ações que prejudicavam a Amazônia e comunidades indígenas", pontua a cientista política Mariana Llanos, do Instituto Alemão para Estudos Globais e Regionais (Giga).
Em junho de 2019, a então chanceler federal Merkel disse ver com "grande preocupação" a situação no Brasil sob Bolsonaro. Pouco tempo depois, em meio à alta do desmatamento da Amazônia e a inércia de Bolsonaro em combater o problema, a Alemanha suspendeu os repasses para o Fundo Amazônia – mecanismo criado em 2008 para financiar ações de prevenção e combate ao desmatamento do bioma. O país europeu também congelou outros programas ambientais na região.
Na época, Bolsonaro menosprezou o ocorrido. "Ela [Alemanha] não vai mais comprar a Amazônia, vai deixar de comprar a prestações a Amazônia. Pode fazer bom uso dessa grana. O Brasil não precisa disso", afirmou.
Em 2020, o governo alemão admitiu ainda a dificuldade de cooperar com o Brasil em áreas como política ambiental e assistência aos povos indígenas.
Mas o afastamento não foi impulsionado só pelo lado alemão. "A Alemanha evitou o Brasil durante o governo Bolsonaro, mas Bolsonaro também não teve muito interesse na Alemanha", destaca Birle.
Em 2021, Bolsonaro chegou a se reunir em Brasília com a deputada alemã Beatrix von Storch, então vice-líder do partido ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), cujos deputados não costumam ser recebidos por governo estrangeiros devido às suas tendências extremistas.
Já no âmbito econômico, houve uma continuidade nas relações. "A Alemanha tem nessa área uma presença estabilizada no Brasil, porém não houve novos grandes investimentos devido à instabilidade criada com o governo Bolsonaro", afirma Maihold.
Diante desse quadro, a viagem de Scholz pode ser vista como um claro sinal de apoio ao novo governo, avalia Llanos. "Depois dos anos de ostracismo de Bolsonaro, o Brasil volta ao cenário internacional", ressalta.
A viagem do chanceler alemão, que inclui ainda a Argentina e Chile, também sinaliza que o governo alemão apoia a atual direção dos governos desses países. As três nações sul-americanas têm atualmente governos de esquerda, e o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), de Scholz, é de centro-esquerda.
No Brasil, o SPD tem ainda uma ligação histórica com o PT. Em 2021, Lula reuniu-se em Berlim com Scholz após o resultado da última eleição alemã, quando este ainda negociava a formação do atual governo. Na mesma viagem, o petista encontrou-se com outros políticos social-democratas. Enquanto esteve preso, diversas figuras do SPD manifestaram solidariedade a Lula. Em 2018, Martin Schulz, ex-líder do SPD alemão e ex-presidente do Parlamento Europeu, visitou Lula em Curitiba na prisão.
Além de demonstrar esse apoio e de abordar a questão ambiental, os especialistas afirmam que há também interesses comerciais na visita de Scholz. Representantes do setor econômico alemão fazem parte da comitiva que irá ao Brasil. A Alemanha busca, principalmente, novos parceiros para a produção de hidrogênio verde.