No início de agosto, a visita a Taiwan da líder do Congresso dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, causou furor mundial e ansiedade em torno da reação da China. A visita, vista como uma provocação por Pequim, deflagrou uma crise diplomática sem precedentes seguida de sanções por parte do governo chinês e o início de exercícios militares de larga escala na região.
Diversos questionamentos foram levantados em torno dos objetivos da visita, tendo em vista os riscos envolvidos. Em
declaração oficial, Pelosi afirmou que sua presença na ilha deveria ser encarada como
"uma forte demonstração de que os EUA estão com Taiwan". No entanto, oficialmente Washington continua não reconhecendo a independência taiwanesa e considera a ilha como uma província chinesa, em acordo com a política de "Uma China Só".
Nancy Pelosi posa para foto oficial ao lado de sua delegação e de autoridades de Taiwan após aterrissagem em Taipé
© Reprodução/Twitter/Nancy Pelosi
Em competição aberta com os chineses, os EUA têm motivos econômicos e militares para criar tensões na região. A predominância da produção de semicondutores avançados em Taiwan é um dos principais. Atualmente o mercado mundial de semicondutores depende da ilha, que
detém as infraestruturas mais avançadas de fundição do setor concentradas em sua principal companhia, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC).
Para discutir a questão, a Sputnik Brasil conversou com um dos principais especialistas brasileiros em China da atualidade, o economista Elias Jabbour, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e um dos autores do livro "China: o socialismo do século XXI", que discute as minúcias do modelo econômico chinês.
Visita de Pelosi a Taiwan também foi motivada pelos semicondutores
Apesar da liderança dos EUA no setor tecnológico, Jabbour acredita que a China tem vantagens nessa disputa. Para ele, os semicondutores são a principal corrida tecnológica da atualidade, cujo desdobramento coloca em xeque a dominação ocidental no mundo.
Para o economista, a relação dos semicondutores com a visita de Pelosi a Taiwan é direta e indireta. Isso porque, nesse caso, os EUA não anunciam abertamente possíveis intenções de impedir o acesso chinês à indústria taiwanesa, mas a relação é implícita.
Em sua declaração durante a visita a Taiwan, Pelosi cita a indústria de chips taiwanesa e medidas dos EUA para reforçar a posição norte-americana no setor. Durante sua presença na ilha, a congressista também se encontrou com Mark Liu, o presidente da gigante TSMC, que fornece chips para clientes como Apple e Qualcomm, e também o setor militar norte-americano.
"Quando vai para lá [Taiwan], Nancy Pelosi busca demonstrar apoio político a uma região, a uma província, digamos assim, que detém o hardware das infraestruturas de semicondutores que a China necessita muito no momento. Talvez o grande gânglio vital da economia chinesa, hoje, seja as infraestruturas de semicondutores que a China não possui", avalia o pesquisador em entrevista à Sputnik Brasil, que ressalta que a visita da congressista também foi motivada pelo crescente domínio naval chinês na região.
Jabbour ressalta que apesar de dominar tecnologias de ponta como o 5G, a China ainda não tem as infraestruturas necessárias para fabricar e dar escala de produção a chips de cinco nanômetros, por exemplo, uma das tecnologias mais avançadas do setor. A ordem de grandeza se refere ao tamanho do principal elemento dos chips, os transistores. O tamanho deles é diretamente relacionado à capacidade de processamento desses produtos, amplamente utilizados em equipamentos eletrônicos civis e militares.
O logo da Taiwan Semiconductor Manufacturing (TSMC) em sua sede em Hsinchu, província chinesa de Taiwan, 10 de outubro de 2021
© AP Photo / Chiang Ying-ying
Recentemente, a fabricante chinesa de semicondutores Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC) surpreendeu o mundo ao demonstrar capacidade de produzir chips de sete nanômetros, amplamente utilizados em produtos eletrônicos. A SMIC, uma das maiores empresas do mercado, é alvo de sanções dos EUA direcionadas a atrasar o avanço tecnológico no setor de semicondutores da China, principalmente em áreas avançadas, notadamente chips de dez nanômetros ou menos.
Apesar de que ainda não se sabe se Pequim tem capacidade de produção em larga escala dessa tecnologia, o avanço da fabricante chinesa demonstra que as sanções não interromperam o desenvolvimento tecnológico chinês. Para Jabbour, o avanço também mostra que a China demonstra capacidade de sofisticação crescente no setor.
Descoberta sobre chips na China tem impacto comparável ao da bomba atômica
Apesar da pouca repercussão, o recente anúncio da chinesa SMIC de que é capaz de produzir chips de sete nanômetros é uma notícia de grande impacto. Para o pesquisador Elias Jabbour, essa descoberta é equivalente em impacto político ao desenvolvimento das primeiras armas atômicas e pode desequilibrar a competição internacional no setor.
"Se a China conseguiu fazer isso é porque ela se encontra no caminho que vai levá-la muito mais adiante, porque ela tem todos os meios possíveis e necessários para alcançar os EUA", afirma o pesquisador.
Para Jabbour, diferente do Japão, que também já foi visto como o principal competidor de Washington, a China tem condições de superar os EUA. Isso porque Pequim possui um mercado interno potencial de
800 milhões de pessoas, tem um Estado com capacidade de investimento para
gerar inovação tecnológica e um sistema público de financiamento.
"A China tem um sistema público de produção que a coloca à frente de qualquer país do mundo nesse aspecto. O sistema nacional de inovação tecnológica da China é um desenho institucional mais sofisticado", avalia o especialista.
O presidente, Joe Biden, participa de um evento para apoiar a legislação que incentivaria a fabricação doméstica e fortaleceria as cadeias de suprimentos de chips de computador no South Court Auditorium no campus da Casa Branca, 9 de março de 2022
© AP Photo / Patrick Semansky
Vitória da China nos semicondutores romperia dominação ocidental
O pesquisador Elias Jabbour aponta que até pouco tempo atrás o petróleo era tido como a maior riqueza que um país poderia ter. Para ele, esse quadro está em transformação e o desenvolvimento de tecnologias de processamento de dados tende a assumir um papel central na competição interestatal.
"Os países que sairão na frente na batalha entre poderosos Estados nacionais são aqueles que detiverem a maior capacidade de acumular informações e dados. A partir dessa acumulação de informações de dados, eles podem montar estratégias nacionais de desenvolvimento e planejar economicamente. Não é só uma questão de Internet rápida, é muito mais do que isso. Hoje, quem detiver todas as cadeias de valor das chamadas tecnologias da informação é basicamente o país que poderá dominar o mundo no futuro", aponta o pesquisador.
Jabbour acredita que os Estados Unidos seguem à frente nessa competição e defende que a China precisa correr atrás dessas tecnologias, especificamente o desenvolvimento de semicondutores avançados. Segundo o pesquisador, essa é a principal disputa internacional atualmente, o que separa países periféricos e centrais.
"A grande luta de classes que existe no mundo de hoje, a contradição suprema entre países periféricos e centrais, entre socialismo e capitalismo, é a luta pela soberania tecnológica chinesa pelos semicondutores. Isso romperia uma espécie de dominação ocidental sobre todas as tecnologias no mundo desde Colombo. É fundamental, é central alcançar esse nível de manufatura tecnológica", afirma.
Técnicos inspecionam peça de equipamento em fábrica de chips da Micron Technology, em Manassas, EUA, 11 de fevereiro de 2022
© AP Photo / Steve Helber
Financeirização atrapalha esforços dos EUA no setor e ameaça economia norte-americana
Recentemente o governo norte-americano aprovou o Chips and Science Act, uma lei de incentivo com previsão de investimento de US$ 52 bilhões (cerca de R$ 268 bilhões) no setor de fabricação e desenvolvimento de chips. De acordo com o pesquisador Elias Jabbour, o pacote aprovado por Biden busca "jogar a fronteira do conhecimento" para a frente na tentativa de ganhar vantagem sobre os chineses na corrida por esse setor estratégico. Apesar da tentativa robusta, Jabbour demonstra desconfiança de que os EUA consigam concretizar esse objetivo.
"A economia dos EUA é muito financeirizada. Tenho colegas que dizem, por exemplo, que acham que esse dinheiro todo investido vai direto para a produção de manufatura, de investimentos nesses setores de alta tecnologia. Já eu desconfio que boa parte dele [do dinheiro] vai para a financeirização", afirma o pesquisador.
Diante da competição com a China, Jabbour aponta que os EUA precisam
contornar a financeirização para
garantir que seus investimentos no setor de semicondutores não sejam em vão. Segundo o especialista, esse problema pode ser uma
ameaça existencial para Washington.
"A financeirização atingiu todas as empresas norte-americanas. Isso pode ser um problema muito sério para os EUA em uma etapa crucial para a própria existência norte-americana. Os norte-americanos também passam por um problema existencial, que é a China", conclui.