No ano de 1972, em uma manhã cinzenta de inverno e com ruas lotadas de cartazes escrito "abaixo o imperialismo da América", o então presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974), desembarcava em Pequim.
Na visita, Nixon participou de reuniões com o fundador da República Popular da China, Mao Zedong e, segundo relato do tradutor do primeiro-ministro Zhou Enlai, quando apertou a mão de Mao, Nixon disse: "
Esta mão estende-se pelo oceano Pacífico em amizade", de
acordo com Notícias ao Minuto.
Ao longo dos anos, outros presidentes foram à China, como George W. Bush, Barack Obama e
até mesmo Donald Trump. No entanto, 50 anos após a histórica viagem de Nixon (a primeira de um presidente norte-americano ao país), as relações entre Pequim e Washington
nunca estiveram em um nível tão baixo e estremecido.
O crescimento do gigante asiático incomoda a potência do Ocidente que tenta de todas as formas conter o avanço chinês e manter sua posição, já a China, cada vez mais amplia o seu PIB e se alia a países como a Rússia para garantir sua soberania na Ásia.
Para alguns especialistas, as hostilidades e confrontos diplomáticos envolvendo sanções e acusações entre China e Estados Unidos podem resultar em uma segunda Guerra Fria, exatamente o momento em que se encontrava o mundo quando Nixon foi a Pequim.
O professor de economia chinesa do Instituto de Ensino e Pesquisa de São Paulo,
Roberto Dumas, entrevistado pela Sputnik Brasil, concorda com o fato de que o relacionamento entre as duas nações nunca esteve tão abalado, e tal realidade estaria se afunilando desde a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), quando o país
passou a ter um superávit cada vez maior.
Entretanto, uma progressão robusta no superávit de qualquer país não acontece sozinha, é necessária uma demanda de mercado, e no caso chinês,
ela vem dos próprios EUA, uma vez que "os norte-americanos querem consumir demais e acharam um outro lado do mundo disposto a produzir de forma abundante e barata.
Precisamos lembrar que não se dança tango sozinho", sublinha Dumas. O especialista explica que
conforme o PIB de uma nação vai aumentando, há um desejo de se projetar e expandir geopoliticamente, contudo, na questão chinesa, Dumas não vê intenção de Pequim de ultrapassar os EUA, mas sim "
expulsá-los do Círculo do Pacífico", já que na perspectiva do gigante asiático "a China sempre foi o centro do mundo".
"Estamos em um conflito de gerações […]. A China sempre achou que é o centro do mundo, mas em 1842 perdeu Hong Kong, ou seja, perdeu esse centro. Então para Pequim não é conquistar, ela está voltando para o lugar da onde nunca deveria ter deixado de estar, e isso ajuda a entender as relações mais acirradas com os EUA."
Dentro do objetivo chinês
de ter os norte-americanos longe das águas do Pacífico, Dumas aponta que o governo de Xi Jinping utiliza a
dinâmica do sharp power com os aliados da OTAN ou com países que mantêm boa comunicação com Ocidente – como Japão, Filipinas, Austrália – e nesse contexto, também entra a América Latina, no âmbito da parte comercial e de investimentos. "Uma forma de trazer mais aliados e criar maior dependência financeira é utilizar o sharp power, pois uma vez que um país se torna o maior parceiro comercial de uma região, é mais difícil deliberadamente ir contra ele. A
China exerce o sharp power na América Latina porque não pode exercer o hard power como os EUA fazem no Pacífico implantando bases militares e navios no local." De
acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
o comércio bilateral entre Brasil e China cresceu 44% em 2021 e alcançou a marca de US$ 125 bilhões (R$ 625 bilhões) em negociações. Até o momento, Pequim continua a ser o maior parceiro comercial de Brasília.
Porém, o especialista aponta que essa forte relação, que gera um certo tipo de dependência por parte do Brasil, acontece também
por uma comodidade brasileira.
"Ninguém colocou uma arma na cabeça do Brasil e falou: 'Você tem que vender para China'. Não, o Brasil precisa diversificar seus compradores, por que o país
não fez o Mercosul dar certo? Por que não deu andamento ao acordo com a União Europeia? Há tantos acordos de livre-comércio, [mas escolhe-se] cair no colo da China", analisa o professor.
Questionado se os EUA se arrependeram de ter levado a China para o mercado internacional, Dumas diz que sim, mas que essa inserção apenas acelerou um processo que já estava em andamento.
"Quando se tem um PIB em progressão, é normal que essa nação [China] comece a causar tumulto no meio do mercado internacional. […] A China não é 'um país', ela é um grande conglomerado que faz parte de uma grande estrutura de supply chain [cadeia de suprimentos], uma vez que Pequim está em todas as mesas de todos os consumidores do mundo inteiro e que será difícil se ser substituída por sua magnitude. Se os EUA vão se arrepender, só a história vai dizer", analisa.
Sobre a resposta da China – que cada vez mais se alia à Rússia – em relação ao posicionamento dos EUA na crise ucraniana, Dumas comenta que no começo Pequim foi mais dura com Washington, demonstrando total apoio a Moscou com a expansão da OTAN. Entretanto, com o aumento das tensões, o gigante asiático ficou mais comedido já que "acaba tendo um problema em casa com essa questão".
"No começo, o MRE da China foi bastante incisivo e disse 'estamos juntos' para a Rússia, mas depois baixou um pouco o tom, porque o pensamento chinês é de que a soberania dos países tem que ser respeitada assim como a da China precisa ser, portanto, utilizou o termo 'os países' sem citar nomes, para dizer que a soberania tem que ser respeitada."
Tal fato ficou evidenciado hoje (23), após Pequim criticar o papel dos EUA na crise dizendo que o governo Biden "jogou lenha na fogueira", mas, ao mesmo tempo, pediu para que as partes deem sinais de contenção.
"Na questão da Ucrânia, ao contrário dos EUA, que continuam enviando armas para o país,
criando medo e pânico e até mesmo reforçando a ameaça de guerra, a China tem pedido a todas as partes que respeitem e prestem atenção às preocupações legítimas de segurança de cada um, trabalhem juntos para resolver problemas por meio de negociações e consultas e manter a paz e a estabilidade regionais",
disse a porta voz do MRE da China Hua Chunying.
Um outro ponto observado pelo professor, é que a China olha com "olhos de lince" para o movimento dos EUA na crise ucraniana a fim de observar se – caso a Rússia se dirija para mais partes do território ucraniano – os norte-americanos entrarão com uma ação militar.
"A China quer ver como os EUA vão responder militarmente a uma invasão total da Rússia na Ucrânia. Se não houver resposta militar estadunidense, passa-se a mensagem aos chineses de que provavelmente uma invasão de Taiwan não será respondida imediatamente de forma militar."
Sobre a visita do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), à Rússia na semana passada, Dumas ressalta que, do ponto de vista da política externa, "não houve pior momento para visitar Moscou", mas que por outro lado, o intuito de Bolsonaro foi desenvolver laços comerciais, e a não cabe ao Brasil desmarcar sua ida
por conta das opiniões norte-americanas.
"A República Federativa do Brasil tem que ser soberana e
não ser subserviente a ninguém, o país tem que fazer o que ele quer,
buscar seus interesses e não precisa se aliar a nenhum lado. Quem está 'brigando' é Rússia, EUA e Ucrânia, Brasil não tem nada a ver com isso e não precisaria desmarcar a viagem, principalmente quando a palavra 'Ucrânia' não foi mencionada durante a visita."
Futuro das relações entre EUA-China
Dumas afirma que não vê a comunicação entre Pequim e Washington melhorar no futuro, pelo contrário, a tendência é a degeneração dessas relações, principalmente pelo fato de que a China não vai modificar políticas que os EUA condenam, como as que acontecem na região de Xinjiang, por exemplo.
"Quem
está no poder na China é Xi Jinping, achar que ele vai começar a respeitar os direitos humanos dos uigures em Xinjiang, ou aceitar a
independência de Hong Kong – que ele já vê como uma província chinesa e quer fazer o mesmo com Taiwan – não vai acontecer, portanto, vejo claramente uma maior deterioração, não sei em que velocidade, das relações, e uma melhora das mesmas é quase que impossível", observa Dumas.
De acordo com a Administração Geral de Alfândegas da China (GACC, na sigla em inglês)
citada pela Reuters,
o superávit comercial da China com os Estados Unidos
foi de US$ 39,23 bilhões (R$ 196,25 bilhões) em dezembro do ano passado e
US$ 396,58 bilhões (R$ 1,98 trilhão) em todo o ano de 2021.