A fotógrafa freelancer americana Amy Harris tornou-se o mais novo alvo de uma das maiores ameaças ao jornalismo: a tentativa de quebrar o sigilo das fontes, que nos EUA é assegurado pela Constituição.
Ela entrou com um processo contra o comitê da Câmara dos Deputados dos EUA, responsável pela investigação sobre a invasão do Capitólio, para impedir que a operadora Verizon seja obrigada a entregar registros de todas as mensagens e ligações realizadas a partir de seu celular pessoal entre 1º de novembro de 2020 e 31 de janeiro de 2021.
O interesse do comitê deve-se a um projeto que a fotógrafa realizava antes da invasão do Capitólio, documentando o grupo extremista Proud Boys, que é acusado de ser um dos responsáveis pela insurreição que deixou cinco mortos. Ela falava com os membros do grupo, e por isso corre o risco de ter exposta toda a sua comunicação profissional e também mensagens pessoais.
No processo, Amy Harris afirma que entregar esses registros ao Comitê da Câmara não apenas interferiria em sua privacidade, mas também a forçaria a revelar o sigilo das fontes.
Em uma notificação enviada no dia 2 de dezembro à fotógrafa, a Verizon declarou que cumpriria a intimação recebida da Câmara, a menos que recebesse uma ordem judicial contestando o pedido até 15 de dezembro.
O caso despertou preocupação das organizações de defesa da liberdade de imprensa. O Centro de Proteção aos Jornalistas (CPJ) emitiu um comunicado protestando contra a medida.
“O comitê da Câmara dos Estados Unidos deve respeitar os direitos dos repórteres de manter o sigilo de suas fontes, que é a pedra angular da liberdade de imprensa”, disse Katherine Jacobsen, coordenadora do CPJ para os Estados Unidos e Canadá.
“A medida para obter os registros telefônicos de Amy Harris viola seus direitos e prejudica sua capacidade de trabalhar com fontes. A intimação deve ser retirada”, cobrou o CPJ.
O CPJ diz ter enviado um e-mail à Verizon, mas não recebeu resposta.
A National Press Photographers Association (NPPA) dos EUA, à qual Harris é afiliada, afirma que os registros solicitados pela Câmara também contêm os números de telefone de outras fontes confidenciais e não confidenciais.
A organização diz que tal acesso, portanto, configuraria “uma intromissão inadmissível em atividades de apuração, prejudicando a capacidade de a fotógrafa cobrir notícias no presente e no futuro, além de colocá-la em perigo diante de quem deseje prejudicá-la ou assediá-la com base em suas reportagens”.
Em uma declaração ao CPJ, a Diretora Executiva da NPPA, Akili-Casundria Ramsess, disse que, embora a organização “aprecie a missão crucial do Comitê da Câmara”, iniciativas como a da intimação “têm um efeito assustador sobre a Primeira Emenda, ameaçando valores cruciais para os princípios democráticos que o comitê foi criado para proteger.”
Amy Harris é uma profissional reconhecida, cujos trabalhos já foram publicados em veículos como o jornal Washington Post e as revistas Vanity Fair, Rolling Stone e Time.
Segundo a NPPA, Harris passou boa parte da carreira documentando os passos de artistas e seus shows, como fotógrafa freelancer para a Associated Press.
Depois que a pandemia paralisou os espetáculos, começou a fotografar os protestos por justiça racial motivados pelo assassinato de George Floyd e as eleições presidenciais de 2020.
Amy Harris esteve em 23 cidades onde ocorreram protestos e fez mais de 50 mil imagens, publicadas em veículos globais. Em dezembro de 2020, ela começou a cobrir os Proud Boys e seu líder, Henry “Enrique” Tarrio, que tinha conhecido semanas antes.
Em 4 de janeiro, ela foi para Washington como parte de sua cobertura do grupo extremista de extrema direita e de seus membros.
Pouco depois, Tarrio foi preso sob a acusação de contravenção. Posteriormente, ele enfrentou duas acusações de porte de dispositivos de alimentação de munição de alta capacidade.
Na capital federal, a fotógrafa começou a documentar os comícios “Stop the Steal” (Pare o roubo, em alusão a uma suposta fraude eleitoral que teria feito Donald Trump perder as eleições) como parte de sua cobertura do Proud Boys.
Ela contou que no dia da posse, quando a insurreição aconteceu, estava fora do Capitólio quando se viu no meio de uma multidão que a empurrava em direção ao prédio.
Harris disse que a certa altura perdeu o telefone, e que não estava com ele enquanto documentava o ataque.
As fotos que produziu naquele dia foram publicadas no Washington Post, Cincinnati Enquirer, Gothamist, no britânico The Guardian e no Press and Journal, da Escócia.
Harris mais tarde disse ter recuperado o telefone no Hyatt Hotel de Washington. Um membro dos Proud Boys o teria encontrado e deixado em seu hotel, conforme consta no processo judicial.
A ação judicial movida por Amy Harris sustenta que a intimação à Verizon viola a cláusula de devido processo da Quinta Emenda da Constituição americana, o direito à privacidade assegurado pela Quarta Emenda e sobretudo a Primeira Emenda, que assegura as proteções básicas aos jornalistas, incluindo o sigilo das fontes.
“Além disso, busca minar essas proteções fundamentais sem dar a Harris um aviso justo e uma oportunidade de contestar sua legalidade, exigindo que os registros sejam entregues apenas duas semanas após a emissão da intimação”, dizem os advogados da fotógrafa.
A defesa de Harris sustenta que as informações solicitadas à Verizon são extensas e invasivas, e que a fotógrafa tinha “uma expectativa razoável da privacidade de seus dados pessoais no telefone celular.”
Harris não é a única insatisfeita com o comitê que investiga os ataques ao Capitólio, embora nos outros casos a reação não tenha relação com o sigilo das fontes. Autoridades e figuras políticas ligadas a Donald Trump também foram intimadas e reagiram judicialmente.
Entre os principais intimados estão Mark Meadows, ex-chefe de gabinete do então presidente, e os conselheiros Steve Bannon e Stephen Miller.
Meadows está processando a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e os membros do comitê para que sejam invalidadas as intimações que recebeu. Ele argumenta que o comitê “age sem qualquer poder legislativo válido e ameaça violar princípios de longa data de privilégio executivo e imunidade que são de origem e dimensão constitucional”.