“Esta informação [sobre a existência de pressões] chegou-me, mas não me lembro de quem me fez chegar”, afirmou Gove, terça-feira (23), em tribunal, na qualidade de declarante, no processo principal das dívidas ocultas, no valor de 2,3 mil milhões de euros, contraídas por empresas estatais sem conhecimento público.
Questionado sobre a atitude que teve quando soube que o Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE) estava a exercer pressões sobre os técnicos do Banco de Moçambique, para emitirem pareceres favoráveis aos empréstimos, Ernesto Governo sustentou que tais relatos não lhe chegaram com uma “veemência” que suscitasse preocupação.
“Não fiz nada em concreto, não senti gravidade capaz de pôr em causa o discernimento dos trabalhadores na apreciação do processo”, afirmou.
Ernesto Gove assegurou que se tivesse entendido que as alegadas pressões poderiam perturbar a autonomia dos seus assessores na avaliação do expediente das dívidas ocultas, teria abordado o então diretor-geral do SISE, Gregório Leão, arguido no processo principal das dívidas ocultas.
“Se tivesse chegado com a veemência com que se está a dizer, havia de falar com o diretor-geral do SISE para saber se esta é verdadeiramente a prática”, salientou.
No início do interrogatório, o antigo governador do Banco de Moçambique admitiu que os contratos de financiamento das empresas beneficiárias do dinheiro das dívidas ocultas continham uma “irregularidade”, mas foram autorizados, porque era uma questão de “soberania e urgente”.
“Para mim era irregularidade suprível”, afirmou Ernesto Gove.
O declarante assumiu que os contratos de financiamento das três empresas que beneficiaram do dinheiro das dívidas ocultas deram entrada no banco central já assinados com os bancos estrangeiros que concederam os empréstimos.
Pela legislação moçambicana, os documentos deveriam ter sido objeto de autorização do regulador antes de terem sido assinados.
O antigo governador do banco central assegurou que a instituição exerceu o seu dever de verificação da conformidade dos contratos, seguindo critérios técnicos, tendo autorizado a contração dos empréstimos por se tratar de matéria de soberania e urgente.
“A insuficiência [no cumprimento de todos os requisitos] era, para mim, suprível, o que mais relevava era que devêssemos continuar” pela “questão de soberania” invocada para aqueles empréstimos. “Foi a interpretação que nós [no banco central] fizemos”, declarou.
Ernesto Gove assinalou que o SISE apontava a crise política e militar que o país vivia depois das eleições gerais de 2009 e as ameaças de pirataria na Zona Económica Exclusiva (ZEE) como realidades que exigiam o reforço das capacidades de defesa e segurança do país.
No entanto, as três empresas públicas não tinham qualquer vocação militar e serviram para retirar dinheiro ao Estado, com o argumento de financiarem operações de defesa da costa, como referem vários analistas.
O antigo governador do Banco de Moçambique explicou que não alimentou reservas em relação ao expediente de autorização das três empresas, porque o respetivo pedido vinha acompanhado de garantias, assinadas pelo então ministro das Finanças Manuel Chang, detido na África do Sul ao abrigo de um processo movido pelos EUA.
Na segunda-feira (22), a administradora do Banco de Moçambique Silvina de Abreu disse que sofreu “chantagem emocional e pressão” dos serviços secretos para dar parecer favorável à contração das dívidas ocultas, sob o argumento de serem de “importância estratégica”.
“Senti esses aspetos todos na minha pele, tenho essas sequelas e até aqui o assunto me persegue”, afirmou Silvina de Abreu, como declarante.
Segundo referiu, a “chantagem emocional e psicológica” foi exercida por António Carlos do Rosário, então diretor da Inteligência Económica do SISE e também arguido neste caso.
“Fazia chantagem emocional forte. (…) Ele estava sempre a referir que tínhamos que ser patriotas e nós não devíamos estar a criar constrangimentos para que os projetos avançassem”, afirmou.
O Ministério Público moçambicano considera que as empresas estatais Proindicus, Empresa Moçambicana de Atum (Ematum) e Mozambique Asset Management (MAM) foram propositadamente criadas para a mobilização do dinheiro das dívidas ocultas, que alimentaram um gigantesco esquema de corrupção.
A justiça moçambicana acusa os 19 arguidos do processo principal de se terem associado em “quadrilha” e delapidado o Estado moçambicano em 2,7 mil milhões de dólares (2,28 mil milhões de euros) – valor apontado pela procuradoria e superior aos 2,2 mil milhões de dólares até agora conhecidos no caso – angariados junto de bancos internacionais através de garantias prestadas pelo Governo.
Os empréstimos foram secretamente avalizados pelo Governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), liderado pelo Presidente da República à época, Armando Guebuza, sem o conhecimento do parlamento e do Tribunal Administrativo. O atual Presidente, Filipe Nyusi, era então ministro da Defesa.