Vistos de cima, a uma longa distância do chão, os barracos de lona podem ser quase imperceptíveis. Ocupam apenas uma pequena e estreita faixa de terra em meio a uma imensidão de incômodos tons de um verde uniforme e de pálidos marrons-acinzentados. Estradas de asfalto e de terra conectam a paisagem verde-marrom aos centros de cidades do interior sul de Goiás. Esse ponto de vista já nos sugere algumas pistas do que se descobre ao voltar o olhar, agora, a partir do chão: cercados pelo latifúndio, sonhos ainda resistem.
“Eu acho que é realmente o sonho que motiva a gente a continuar”. A frase ecoa pela voz trêmula e emocionada de Camila, jovem sem-terra do acampamento Leonir Orback[1] em Santa Helena de Goiás. Os olhos, que durante a fala ganham um certo brilho, parecem também cansados para a pouca idade. Revelam, porém, toda a resistência coletiva contra as inúmeras formas de expulsão utilizadas pelo agronegócio, intensificadas nos últimos tempos com a utilização indiscriminada de agrotóxicos. Separadas das lavouras de soja e cana-de-açúcar apenas por uma cerca de arame, 200 famílias lutam para produzir alimentos e sobreviver.
O estado de Goiás, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), é o quarto maior produtor de grãos do país e, entre 2021 e 2022, se tornará o segundo maior produtor nacional de cana-de-açúcar. Na contramão dos números recordistas e das aclamadas posições do estado no ranking do latifúndio, a realidade que se repete e ameaça famílias de agricultores e agricultoras: no início deste ano, quatro pessoas do acampamento precisaram buscar atendimento médico por intoxicação de agrotóxico pulverizado por aviões que combatiam pragas na lavoura de soja vizinha.
Uma das acampadas, que precisou ir até uma unidade de saúde, contou que ao menos outras oito pessoas também relataram dores de cabeça e náuseas, mas, em razão da pandemia, sentiram medo de procurar ajuda médica e preferiram tratamentos caseiros. Ela ainda denuncia que as normas previstas em lei não estão sendo cumpridas: “Eles vêm pulverizando as roças sem ter distanciamento do acampamento, onde nós temos nossas famílias, crianças, idosos. O latifundiário não tem essa preocupação. Isso tem afetado a saúde das pessoas, dos plantios. O reflexo está nas folhas de bananeira, nas criações, nas hortaliças”.
Um estudo inédito da pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Larissa Bombardi, apresentado ao parlamento Europeu no dia 11 de maio deste ano, evidencia que, caso o Acordo de Associação entre Mercosul e União Europeia, assinado pelo governo de Bolsonaro no ano passado, seja ratificado, pode agravar ainda mais o cenário de populações vítimas de envenenamento por agrotóxicos proibidos na Europa. Pouco antes do lançamento do trabalho, Larissa precisou deixar o Brasil após ser ameaçada por defensores do agronegócio em razão da publicação de outro estudo, de 2019, que conecta o uso de agrotóxicos no Brasil com a União Europeia.
O atlas “Geografia da assimetria: o ciclo vicioso de pesticidas e colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia” aponta que a ratificação do acordo entre os blocos reduzirá em mais de 90% as tarifas de importação de agrotóxicos. Revela, ainda, que enquanto o cultivo de soja teve aumento de 53,95% entre 2010 e 2019 no Brasil, o uso de agrotóxicos cresceu 71,46% no mesmo período. Para a pesquisadora, esse modelo expõe o que chama de “neocolonialismo europeu”, em que o Brasil exporta bens básicos enquanto importa tecnologia, movimento contrário do feito pelas nações ricas.
Esses números se traduzem nos impactos na vida de pessoas, com rostos, nomes e uma história com a terra em que vivem e que têm que enfrentar, diariamente, as chuvas de agrotóxicos das lavouras de monoculturas, cada vez mais próximas. Em Bela Vista de Goiás, sudeste do estado, Dona Adelice mora em sua terra há 42 anos. Ali, o cenário se repete. Nos últimos anos, quase todas as pequenas propriedades vizinhas foram arrendadas para o cultivo da soja e do milho. “Eu escuto o barulho dos aviões nessas lavouras tudo aí. Sempre vem e dá os balões pertinho aqui da casa, volta, passa. Esse barulho é constante quando está batendo veneno”, conta.
Foi neste município que, no dia 07 de maio deste ano, 60 trabalhadores rurais com sintomas de intoxicação procuraram o Hospital Antônio Batista da Silva e, desses, 46 precisaram de atendimento após um avião pulverizador de agrotóxicos sobrevoar a lavoura onde eles trabalhavam e despejar o veneno. Segundo Saulo Reis, coordenador da CPT Goiás, que acompanhou o caso, os trabalhadores vieram de Morrinhos e trabalhavam com o manejo do milho durante o ocorrido. A Polícia Civil identificou o local onde ocorreu a intoxicação e informou que um Inquérito Policial foi aberto para apurar o fato.
Uma semana depois, equipes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Secretaria de Estado de Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad-GO), Agência Goiana de Defesa Agropecuária (Agrodefesa) e Superintendência de Vigilância em Saúde (Suvisa-GO) foram até a fazenda, que estampa em sua entrada a placa da empresa SR Agropecuária, para averiguar o fato. De acordo com o boletim expedido pelo Ibama, a equipe de fiscalização foi recebida pelo arrendatário da fazenda. Ele relatou que uma empresa especializada teria realizado a aplicação do agrotóxico. O arrendatário informou, ainda, que os trabalhadores rurais intoxicados também são contratados por uma outra empresa terceirizada do ramo de produção de sementes de milho, de nome “Sempre Sementes”, para a qual eles prestam serviços.
Após visita e notificação lavrada pelo Ibama ao arrendatário, foi comprovada a aplicação do pesticida Curyom 550 EC e Nativo, classificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa como Altamente Tóxico e Medianamente Tóxico respectivamente. Os dois pesticidas também são classificados em suas bulas como “produto muito perigoso ao meio ambiente”. De acordo com o órgão, a competência primária para autuação é da agência ambiental estadual, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Caso o órgão estadual não aplique as devidas sanções, a Superintendência do Ibama no estado afirmou que as aplicará de forma supletiva.
Não é um caso isolado
Os casos de intoxicação por agrotóxicos na região não são isolados. Esse cenário está associado a uma mudança no perfil de ocupação da região, que nos últimos cinco anos tem ganhado outra configuração. Historicamente, “Bela Vista é caracterizada por ser um município de pequenos proprietários de terra, ou seja, de camponeses. Esses camponeses se destacam pela produção de alimentos, sobretudo a produção de polvilho de alta qualidade. Nos últimos anos a fronteira agrícola tem avançado nessa região, então, a gente percebe um processo de substituição da matriz produtiva na medida em que o agronegócio avança. E aí tem também a utilização do agrotóxico. O veneno vai inviabilizar a produção da agricultura familiar”, relata Saulo, da CPT.
“Minhas pernas começaram a coçar e já ficaram aquela vermelhidão muito grande…e coçava, coçava, coçava e continuava espalhando”, conta a agricultora Antônia Peres, da comunidade Araçá, no município de Buriti (MA). Foi nesta comunidade que um caso emblemático comoveu o país. No início deste ano, uma criança de sete anos foi vítima da chuva de agrotóxicos que atingiu sua casa, deixando sua pele “em carne viva”. André é filho de Antônia e até o momento da contaminação, ele não entendia os males causados pela pulverização aérea de veneno, chegando até a brincar de correr atrás do avião.
Em 22 de abril de 2021, cerca de nove pessoas da comunidade Araçá foram atingidas pela chuva de veneno, incluindo o garoto André, que ficou em situação mais grave. Segundo relatos dos moradores, a pulverização aérea já estava no terceiro dia consecutivo. “É uma guerra química”, conta Diogo Cabral, advogado da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
Segundo Diogo, suspeita-se que o avião vinha de uma terra alugada pela família Introvini. Conhecida nacionalmente por sua produção de soja nos estados do Maranhão e Mato Grosso, Gabriel Introvini e seu filho André Introvini se dividem na administração das propriedades da família. As fazendas na região de Buriti já passaram por operação da Polícia Militar do Maranhão e Ministério Público, por suspeita de desmatamento ilegal para plantio de soja. Na ocasião, tratores e equipamentos foram apreendidos por descumprimento de decisão da Justiça Federal do Estado.
A denúncia ao grave caso ocorrido no Maranhão mobilizou organizações, que assinaram uma nota pública. “A utilização de agrotóxicos representa por si só um grave problema para a saúde dos brasileiros e para o meio-ambiente. A aplicação de venenos através de aviões é ainda mais perversa, pois segundo dados do relatório produzido pela subcomissão especial que tratou do tema na câmara federal, 70% do agrotóxico aplicado por avião não atinge o alvo. A chamada “deriva” contamina o solo, os rios, as plantações que não utilizam agrotóxicos (agroecológicos) e, como vimos agora, populações inteiras.”, revela trecho do documento, que conta com assinatura de mais de 50 organizações de direitos humanos e do terceiro setor, inclusive a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco.
Chove veneno no Brasil
Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) liberou 1.411 novos tipos de defensivos agrícolas. Atualmente, cerca de 3.477 produtos agrotóxicos são comercializados no Brasil, quase um terço liberado de 2019 para cá. Parte significativa são produtos genéricos, já utilizados no país, mas agora com autorização de fabricação e venda ampliadas. No entanto, alguns registros de princípios ativos são inéditos, como: dinotefuram, piroxasulfone, tolfenpirade, tiencarbazona e a fenpirazamina.
Segundo registros da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, desses produtos autorizados recentemente, há 522 (41,5%) contendo 153 ingredientes ativos, dos quais 53 foram banidos em outros países. Vale lembrar que em 8 de outubro foi publicado o Decreto 10.833/2021, que altera a Lei de Agrotóxicos de 1989, autorizando no Brasil o uso de substâncias já proibidas nos Estados Unidos e Europa. Entre as alterações validadas pelo decreto, a mais alarmante está no Art. 8º: “Após a aprovação do órgão federal de saúde e de meio ambiente, os produtos formulados de uso agrícola poderão dispor de recomendações para uso: I – em ambientes hídricos; II – na proteção de florestas nativas e de outros ecossistemas; e III – em ambientes urbanos e industriais.”
Com a flexibilização do uso e aplicação de agrotóxicos no país, os riscos de contaminação em larga escala ou efeitos mais graves à saúde se ampliam. Segundo o Instituto Nacional do Câncer – Inca, os principais grupos de risco na contaminação por uso de agrotóxicos são: “agricultores, pecuaristas, agentes de controle de endemias (ACE), trabalhadores de empresas desinsetizadoras e trabalhadores das indústrias de agrotóxicos, que sofrem diretamente os efeitos dos agrotóxicos durante a manipulação e aplicação; gestantes, crianças e adolescentes devido às alterações metabólicas, imunológicas e hormonais presentes nesse ciclo de vida, e população em geral, por meio de consumo de alimentos e água contaminados”.
O Inca também alerta para a contaminação por pulverização aérea, em que essas substâncias se dispersam e contaminam áreas fora do local direcionado para aplicação, bem como locais de moradia e plantio das comunidades que residem no entorno das plantações, como nos casos citados nesta reportagem. No Brasil, oito municípios e o estado do Ceará criaram projetos de lei que proíbem a pulverização aérea de agrotóxicos em seus territórios.
“Nosso escudo é a produção”
A guerra química como estratégia de expulsão das comunidades camponesas e tradicionais, reflete diretamente nos processos de luta e permanência dos territórios ameaçados. Em grande parte, são comunidades que possuem pequenas produções alimentícias ou de insumos animais, produtos da agricultura familiar de subsistência e de abastecimento das cidades vizinhas às áreas rurais.
Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, no ano de 2020 as exportações referentes ao agronegócio brasileiro somaram US$7,30 bilhões de dólares. Já segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o Brasil deve produzir uma safra recorde de 268,3 milhões de toneladas de grãos em 2020/21. Esses dados demonstram o interesse de produção e concentração de cultivo no latifúndio: produção de grãos e oleaginosas.
Em tese, o lucro do setor não reflete na realidade da mesa das populações brasileiras. É consenso que a agricultura familiar é a principal responsável pelo abastecimento de alimentos no país, gerando uma diversidade de produção em pequena e média escala. Esse modo de produção é composto, principalmente, por comunidades camponesas, pesqueiras, assentamentos da reforma agrária, povos e comunidades tradicionais e extrativistas.
No acampamento Leonir Orback, constituído por trabalhadores sem-terra, “o escudo contra o agronegócio é a produção”, afirma Vitória, liderança regional do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem-Terra (MST) e acampada. Segundo ela, a diversidade de alimentos produzida no acampamento abastece não só a sua mesa, como também foi distribuída na periferia da cidade de Santa Helena durante a pandemia. “Nós estamos aqui cercados de fazendas, a cidade está cercada de fazendas, mas não é essa produção que abastece nossa mesa”.
Esse escudo contra o latifúndio, mesmo diante de tantas ameaças, alimenta não somente a mesa do povo brasileiro, como também os sonhos de camponeses que acreditam na força das sementes da luta. “Você olha e você se indigna ao ver que tudo aquilo tá acontecendo e você não tem força para mudar aquilo, que você está sozinho, que ali você é só um. Mas quando você sai e vê que tem mais gente ao redor, você se motiva mais ainda a querer continuar na luta, a querer chegar lá na frente e falar: eu venci o latifúndio, eu venci tudo isso, nós estamos conseguindo instaurar o que a gente quer pra nossa vida…. Eu acho que é realmente o sonho que motiva a gente a continuar”, finaliza a jovem acampada Camila, com os olhos cansados, mas que reforçam a resistência.
Amanda Costa e Andressa Zumpano são jornalista da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
[1] O acampamento Leonir Orback ocupa, desde 2015, o latifúndio da Usina Santa Helena de Açúcar e Álcool S.A, empresa devedora de mais de 1 bilhão de impostos e dívidas trabalhistas, com falência decretada pelo Tribunal de Justiça de Goiás.