De bebês a pré-adolescentes, os filhos de mais de 100 agricultores que perderam suas casas em Jérémie, no Sudoeste do Haiti, após um terremoto atingir a região em 14 de agosto deste ano, agora disputam, na lei do mais forte contra o mais fraco, toda doação que chega ao abrigo provisório onde sobrevivem atualmente.
A comunidade, que ocupou um terreno descampado no distrito, é sobrevivente de uma região montanhosa. Ali, o tremor de terra de agosto desprendeu rochas da montanha, que rolaram abaixo e mataram centenas de pessoas. Muitas delas ainda dormiam quando foram atingidas, de surpresa, pelos destroços.
Outras, não conseguiram escapar dos rios que cortam as mesmas montanhas. Ali mesmo morreram. Com medo de contaminação, pelo fato de que há corpos no entorno das águas naturais que serviam a comunidade, o líquido virou a principal necessidade daqueles que sobreviveram e estão no abrigo.
Prestes a completar 20 dias da tragédia, é este o período que toda água consumida por aquelas mais de 100 famílias é fruto exclusivo de doações. Ali, questionado pela reportagem, um menino de 8 anos, com a ajuda de um tradutor, afirmou que seu maior sonho é ser rico. Com dinheiro, ele disse que poderia comprar muita água.
Diferentemente de outros abrigos provisórios espalhados por outras cidades do Sudoeste do Haiti também atingidas pelo terremoto, como Les Cayes e Nippes, as crianças de Jérémie, uma área rural mais afastada, não brincam. Suas expressões, a todo momento, são de tensão e de atenção. Afinal, é preciso estar esperto caso chegue alguma ajuda humanitária naquela área tão isolada.
Um menino, de 11 anos, até tentou arrumar uma maneira de se divertir em meio à situação de precariedade. Ele cortou uma borracha que é usada em acostamentos de ruas no Haiti e montou uma máscara. Por dois segundos, enquanto ele a mantinha sobre o rosto, ele imitava um superhéroi. Logo depois, o garoto tirou a máscara, olhou para ela e seu sorriso, aos poucos, foi desaparecendo.
Já três meninas, uma de 8 e duas de 10 anos, caminhavam sempre juntas. Perguntadas sobre o que elas faziam no dia a dia, uma dela disse que ajudava sua mãe a cuidar de uma irmã mais nova. Indagada se, além de ajudar, ela também gostava de brincar com as colegas, ela não soube responder. Disse, apenas, que gostava de estar com as meninas de idade próximas.
Quando surge uma sacola na mão de um desconhecido, as famílias arregalam os olhos e se aproximam, de pouco em pouco, na torcida para que seja um alimento. Qualquer tipo de alimento. Naquela tarde, eram alguns pacotes de biscoito, outro pacote de balas e um terceiro pacote com pirulitos. Quando perceberam que era algo comestível, todos pediram, desesperados, que entregassem em suas mãos.
Os doces, destinados às crianças, eram disputados, a tapas, empurros e gritos. Os biscoitos também, mas pelas mulheres do abrigo. Em menos de um minuto, os alimentos foram pegos pelos sobreviventes do terremoto. A maioria deles, porém, ficou sem.
Servidores da segurança pública brasileiros, especializados em controle de desastres naturais, disseram que o recomendável é não doar nada, caso não seja em grandes quantidades, que permitam o acesso de todos da comunidade. Mesmo que seja dolorido visualizar a miséria de perto e querer ajudar com o que tem.
Os brasileiros em missão no Haiti afirmaram que tal medida poderia gerar insegurança, uma vez que eles poderiam entrar em luta corporal pelo alimento. Mesmo assim, quem tem alguma coisa no carro acaba entregando o pouco que tem.
Entre o recomendável e o não recomendável, uma coisa é certa: A miséria é algo a ser combatido, com extrema urgência. Todos os que têm fome e que têm sede, têm, também, pressa. E naturalizar que seres humanos estejam em tais condições, hoje, no mundo, é morrer um pouco, a cada segundo, por dentro.