O empresário do setor de cassinos Yorgen Fenech, envolvido em denúncias de lavagem de dinheiro e corrupção, foi indiciado nesta quarta-feira (18/8) como mandante do assassinato da jornalista maltesa Daphne Caruana Galizia, ocorrido em 2017. Ele, que nega as acusações, pode pegar prisão perpétua pelo crime e uma sentença adicional de 20 a 30 anos por conspiração criminosa.
Escritora, repórter investigativa e blogueira, Caruana Galizia era a principal jornalista de Malta, com projeção nacional e internacional. Ela foi vítima de uma bomba colocada em seu carro, acionada por meio de um celular.
O crime chocou a Europa, pouco acostumada a atentados dessa natureza, mas que vêm se intensificando.
Os ataques a jornalistas na região têm tido em comum o envolvimento de figuras ligadas ao crime organizado ou associadas a práticas ilegais. O caso mais recente foi o do holandês Peter De Vries, assassinado em Amsterdã em julho por dois homens que teriam ligações com o maior narcotraficante do país.
O trabalho da maltesa sempre se concentrou em temas como corrupção, nepotismo, clientelismo e lavagem de dinheiro praticados pela elite política do país. Ao longo de sua carreira, já havia sofrido uma série de ameaças e intimidações.
No momento da morte, respondia a mais de 40 processos judiciais, e investigava negócios de Fenech em torno de uma usina de energia. O caso expôs membros do governo e da elite política e provocou protestos internacionais, que acabaram levando o então primeiro-ministro Joseph Muscat a renunciar.
Um inquérito independente no mês passado concluiu que o governo de Malta deve “assumir a responsabilidade” pela morte de Galizia, mesmo que não tenha desempenhado um papel direto.
A investigação acusou as autoridades maltesas de terem criado uma “cultura de impunidade” que levou à morte da repórter.
Yorgen Fenech é dono de um complexo de cassinos e lojas em Malta e em outros países europeus. Ele já tinha sido preso em novembro de 2019 tentando deixar o país em seu iate.
Outros envolvidos na morte da jornalista cumprem pena pelo crime ou respondem a processos.
Um homem já foi condenado a 15 anos de prisão depois de se declarar culpado pelo assassinato. Dois outros suspeitos foram acusados de plantar a bomba e aguardam julgamento.
Um terceiro suspeito, o suposto “intermediário”, concordou em revelar detalhes da trama para matar a jornalista e obteve perdão.
Daphne Caruana Galizia tornou-se um símbolo da luta pela liberdade de imprensa. As principais entidades se manifestaram sobre o indiciamento do empresário acusado pelo assassinato.
O IPI (Global Network for Press Freedom) disse:
“A acusação de hoje contra o homem que supostamente orquestrou e financiou o assassinato de Daphne Caruana Galizia é um marco na luta contra a impunidade e um passo importante no caminho para a justiça plena.”
A Repórteres Sem Fronteiras saudou a decisão e afirmou que “continuará a fazer campanha para que todos os envolvidos neste ataque horrível sejam levados à justiça”.
O assassinato de Daphne Caruana Galizia como forma de calar reportagens incômodas não é um fato isolado no país.
O principal jornal maltês, Times of Malta, enfrenta processos movidos por Yorgen Fenech para impedir publicação de matérias sobre seus negócios ou sobre o crime contra a jornalista.
Em março, um tribunal rejeitou um pedido dos advogados de Fenech, que acusava de desacato um repórter do jornal, Jacob Borg, que havia denunciado negociações em torno dos resultados do concurso de música Eurovision, em 2019.
A matéria publicada apresentava o conhecido produtor Anton Attard como supostamente tendo tentado manipular as probabilidades de apostas de forma a aumentar as chances do competidor de Malta.
Os advogados do empresário entraram com uma ação contra o jornalista por supostamente violar uma ordem judicial que proibia a publicação de todos os dados recuperados do telefone celular de Fenech, mas o pedido foi rejeitado.
A juíza considerou que a matéria não representou nenhum dano imediato aos interessados, concluindo que nenhuma ação devia ser ordenada contra o jornalista.
Em outubro de 2020, no terceiro aniversário da morte de Daphne Caruana Galizia, o Conselho da Europa publicou um estudo dedicado a ela e aos demais profissionais de imprensa que perderam suas vidas no exercício da profissão.
A Mission to Inform: Journalists at Risk Speak Out, de autoria de Marilyn Clark e William Horsley, é baseado em conversas com 20 jornalistas de 18 países que sofreram diferentes tipos de violência e intimidação.
Há profissionais de Finlândia, Portugal, Sérvia, Turquia, Bósnia-Herzegovina, Azerbaijão, Islândia, Rússia, Ucrânia, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Romênia, Espanha, Grécia e Hungria.
O estudo buscou avaliar o custo humano dos jornalistas em sua missão de fiscalizar os poderosos, aprofundando diferentes ameaças à liberdade de imprensa identificadas em 2017, com base em questionários respondidos anonimamente por 940 profissionais dos 47 países do Conselho da Europa e Bielorrússia.
Metade deles informou ter sido intimidada por grupos de interesses, 43% por políticos e 35% pela polícia. Mais de um terço (39%) disse ter sido alvo de vigilância e 23% disseram ter sido alvo de prisões, investigações ou ameaçados de processos.
Mais de um terço (38%) disse ter temido pela própria segurança.
O estudo também avaliou a forma como essas pressões afetaram o trabalho dos jornalistas e seu efeito inibidor sobre a liberdade de expressão, por levarem à autocensura.
Em virtude do medo de represálias, 33% dos jornalistas admitiram ter sido “seletivos” sobre os dados relatados em reportagens, 31% abrandaram notícias críticas e 15% chegaram a abandonar completamente a pauta.