O golpe militar de Mianmar completou seis meses neste domingo (1/8), com um saldo de mais de 930 civis mortos pelas forças de segurança, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Ativistas, jornalistas e veículos de imprensa independentes estão entre os principais alvos da junta que vem governando o país, que agora passou também a confiscar telefones celulares de pessoas comuns nas ruas como forma de intimidação e bloqueio de comunicações pessoais que possam ameaçar o regime.
Havendo na biblioteca de imagens uma simples foto dos “três dedos”, símbolo da resistência local, os cidadãos podem ser detidos.
O golpe depôs o governo eleito da líder civil Aung San Suu Kyi. Ela foi detida na sequência dos atos que interromperam uma década de governo democrático. O comando militar anunciou que continuará por mais dois anos, com eleições apenas em 2023.
A Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos (AAPP), um grupo de defesa baseado no exterior, afirma que pelo menos 5,1 mil pessoas estão detidas no país.
A inspeção e apreensão de telefones celulares de pessoas andando nas ruas ou até em casa, mais nova ação do governo para inibir os que ainda tentam se opor ao golpe, foi noticiada por um dos poucos veículos que resiste à censura, o site Mianmar Now.
De acordo com a AAPP, citada pelo jornal, o regime está “transformando os telefones celulares dos cidadãos em armas para serem usadas contra eles”.
A entidade afirma que a junta introduziu mudanças legislativas que tornaram mais fácil realizar a vigilância eletrônica.”Embora nenhuma nova lei tenha sido promulgada ainda, a Lei de Proteção à Privacidade e Segurança dos Cidadãos já foi alterada para permitir que se intercepte e inspecione livremente os serviços de telecomunicações”, disse a organização.
Menos de duas semanas depois do golpe, a junta revogou artigos da lei que exigiam a presença de testemunhas durante buscas domiciliares, e que tornavam ilegal a interceptação de ligações telefônicas sem mandado.
Em Yangon, a antiga capital, os jovens dizem correr um risco especial, pois é a geração deles — conhecida como “Geração Z” — que está na vanguarda do movimento contra o golpe.
“Qualquer coisa que mostre que apoiamos o movimento, como uma foto da saudação de três dedos, é o suficiente para nos prender e torturar”, disse um jovem morador de Yangon ao site Mianmar Now.
Uma mulher da cidade de Mandalay, segunda maior do país, contou ao jornal que caminhava na em uma rua movimentada quando foi parada por um membro das Forças Armadas e recebeu ordem de entregar o celular. Ela disse que o militar examinou a galeria de fotos, leu mensagens e verificou a conta do Facebook Messenger.
Ela acrescentou que as tropas que pegaram seu telefone não olharam apenas para suas contas nas redes sociais. Eles também examinaram os aplicativos que ela usava para transações financeiras, como KBZ Pay e Wave Pay.
Uma vez que o conteúdo que pudesse ser incriminatório já tinha sido removido, ela escapou de ser presa como tantos outros. Mas o susto fez com que adotasse autocensura, deixando de compartilhar fotos e mensagens nas redes.
A mulher contou ao jornal que amigos criaram novas contas, na esperança de que postagens não sejam facilmente detectadas. E que a maioria das pessoas passou a evitar ruas movimentadas, onde as abordagens são mais frequentes, preferindo caminhar por ruas secundárias.
O jornal relatou pelo menos um caso de uma pessoa que recebeu a visita de tropas militares à noite em casa, e que revistaram seu celular à procura de atividade subversiva.
“O objetivo é instilar medo em todos, violando sua privacidade em todos os níveis, seja invadindo suas casas ou confiscando seus telefones”, disse um membro da AAPP, que não se identificou por medo de represálias.
Nas primeiras semanas do golpe, todos os jornais independentes foram fechados ou levados a suspender atividades, restando à população poucos sites de notícias com acesso restrito devido a bloqueios de sinal de internet.
Jornalistas vêm sendo presos e condenados no país e até fora dele, como ocorreu com três repórteres que conseguiram fugir para a Tailândia e acabaram sentenciados a sete meses de prisão pelo governo aliado de Mianmar.
A comunicação instantânea acompanha o golpe militar em Mianmar desde o princípio, com o caso da professora de aeróbica que transmitiu sem querer a chegada dos militares à sede do poder no país e viralizou (veja abaixo). A gravação foi publicada no Facebook pela própria professora, Khing Hnin Wai, que afirmou trabalhar para o Ministério da Educação do país.
A comunidade internacional e entidades como a ONU vêm denunciando seguidamente as violações dos direitos humanos em Mianmar, incluindo execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos e desaparecimentos forçados.
O coordenador residente e humanitário da ONU em Mianmar, Ramanathan Balakrishnan, destacou o sofrimento de pessoas. O cenário é agravado pela terceira onda de Covid-19.
O sistema de saúde de Mianmar enfrenta “extrema pressão” por causa da crise do coronavírus, bem como ataques a equipes médicas e instalações. Alguns funcionários integram um “movimento de desobediência civil”, que interrompeu serviços básicos em todo o país.
A organização aponta que as minorias étnicas estão sob risco ainda maior, por resistirem às forças de segurança. Segundo a ONU, mais de 200 mil pessoas foram expulsas de suas casas.
O Plano de Resposta Humanitária feito antes da crise contabilizada cerca de 1 milhão de pessoas precisando de ajuda humanitária. Após a ação dos militares, outros 2 milhões de birmaneses passaram a precisar de apoio urgente, principalmente em grandes cidades como Yangon e Mandalay.