A cultura do cancelamento pode afetar os rumos da pesquisa, fazendo com que estudiosos deixem de lado teses que possam ser consideradas politicamente incorretas?
É o que acha uma celebridade do mundo acadêmico, o professor e filósofo australiano Peter Singer. Junto com os colegas Jeff McMahan e Francesca Minerva, ele criou um periódico científico destinado a funcionar como espaço seguro para pontos de vista impopulares, que podem até ser discutidos sob pseudônimo.
A primeira edição do Journal Of Controversial Ideas (Jornal de Ideias Controversas) traz estudos sobre sobre a fluidez de gênero (a mulher adulta é necessariamente fêmea?), racismo (maquiagem “black face” pode ser justificável?), e outros temas no centro do debate “woke” atual, de engajamento civil e social, como uma comparação entre as respostas à pandemia da Covid-19 e ao aquecimento global.
A exemplo dos demais períodicos que veiculam teses em várias áreas do conhecimento, o Journal of Controversial Ideas (Jornal de Idéias Controversas) recebe artigos escritos por acadêmicos, seguindo o formato dos “papers” tradicionais, como notas explicativas e citação de fontes. Antes de serem publicados, passam pelo processo de “peer review” (revisão por pares), um exame prévio feito por outros pesquisadores.
Mas o julgamento leva em conta apenas a solidez da tese e o interesse social, sem julgar o tema abordado. E diferentemente dos demais perídicos científicos, a publicação permite e encoraja autorias verídicas, mas dá aos autores a opção de publicar seus trabalhos sob um pseudônimo, “para se protegerem de ameaças à sua carreira ou segurança física”.
Ataques a quem defende ideias polêmicas se tornaram comum nas redes sociais e no ambiente acadêmico, com professores ou palestrantes sendo “cancelados” por movimentos de alunos ou de entidades.
Na nova publicação, autores sob pseudônimo podem escolher reivindicar a autoria de seu trabalho posteriormente, ou revelá-la apenas para pessoas selecionadas (como empregadores ou possíveis empregadores). Ou manter sua identidade não revelada indefinidamente.
Na apresentação, os idealizadores dizem esperar que a prática estimule os leitores a dar atenção aos argumentos e evidências de um trabalho, e não a quem o escreveu.
O jornal não é afiliado a organizações. Pertence à Fundação para a Liberdade de Pensamento e Discussão, uma instituição de caridade registrada no estado americano de Nova Jersey, e aceita pelo US Internal Revenue Service como elegível para receber doações.
O líder principal da iniciativa é Peter Singer, um filósofo australiano de 74 anos chamado por muitos de “o maior filósofo vivo”. Professor de bioética da Universidade americana de Princeton mas morando atualmente na Austrália, elesabe em primeira mão o custo pessoal de assumir posições filosóficas impopulares.
É autor de 17 livros e coautor de muitos outros, mas o que o alçou à fama global foi a tese Animal Liberation (Libertação Animal), publicada em 1974, amada e odiada.
Na trabalho, que virou livro, ele defende que da mesma forma que visões racistas e sexistas embasam discriminação as minorias e mulheres, a visão dos animais como seres inferiores permitiu considerá-los como objetos para cumprir os desejos das pessoas, e não como indivíduos com direitos.
E inspirou tendências como o veganismo e movimentos de defesa dos animais, como a ONG Peta. Por outro lado, irritou muita gente que discorda da opinião e de suas implicações em tradições e no consumo.
Na liderança estão também Jeff McMahan, professor de filosofia moral da Universidade de Oxford, e Francesca Minerva, pesquisadora da Universidade de Milão. O conselho editorial que revisa os trabalhos é integrado por mais de 50 acadêmicos de vários países, incluindo uma brasileira, Débora Diniz, que leciona direito na Universidade de Brasília.
Nas regras editoriais, o Journal of Controversial Ideas afirma que o objetivo é promover o conhecimento, a investigação livre e a argumentação racional.
A possibilidade de publicar sob pseudônimo levanta uma questão: é possível manter a credibilidade da discussão científica com anonimato? Um dos argumentos é reduzir o risco que podem correr pesquisadores em regiões onde não há liberdade de expressão. A política diz que “são aceitos artigos que discutam questões ou políticas em culturas não ocidentais que podem não ser controversas no Ocidente, mas são suficientemente controversas em outros lugares onde discuti-las criticamente pode colocar os autores em perigo”.
Também podem ser submetidos artigos que discutam tópicos controversos sob perspectivas culturais, filosóficas, morais, políticas e religiosas. O jornal se diz neutro:
Artigos que defendem ideias comumente consideradas controversas por liberais ou progressistas, e aqueles que defendem ideias consideradas controversas por conservadores ou libertários, são igualmente bem-vindos
Nosso critério para a aceitação de um artigo não será se os editores ou revisores acreditam que as afirmações do artigo são verdadeiras, mas se eles julgam o artigo suficientemente bem argumentado para contribuir com nossa compreensão do tópico relevante.
Mas controvérsia tem limites. A política é não aceitar denúncias de indivíduos ou grupos. “Uma atitude crítica em relação às ideias é bem-vinda, mas a crítica deve ser articulada de maneira civilizada e não deve ser expressa na forma de um ataque a qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos”, dizem as regras editoriais.
Outra preocupação foi evitar a publicação de trabalhos que revelem informações que possam representar perigo material para indivíduos ou a para a sociedade, como instruções para a fabricação de armas biológicas.
“A liberdade acadêmica não exige que tornemos esse tipo de informação pública. O que é ou não perigoso será determinado pelos editores, em consulta com o conselho editorial e, se necessário, com especialistas externos, caso a caso.”
Ao explicar o novo jornal, os autores deixam clara a posição a favor da controvérsia:
“Esperamos que esta publicação mostre o valor de abraçar a controvérsia como um meio de se aproximar da verdade, avançar no conhecimento e reformar paradigmas sociais e culturais.
Acreditamos, como [o filósofo] John Stuart Mill, que mesmo quando as visões dominantes são verdadeiras ou justificadas, se nunca forem desafiadas correm o risco de se tornarem dogmas mortos em vez de verdades vivas.”