A política ambiental brasileira foi alvo de fortes críticas na audiência pública interativa realizada na sexta-feira (9) pela Comissão Temporária da Covid-19 (CTCOVID-19). Os especialistas, que chamaram a atenção para a crise no meio ambiente como fator de disseminação e agravamento de doenças infecciosas, avaliam que o aumento do desmatamento e a aprovação de normas lesivas ao meio ambiente prejudicará a posição do Brasil no cenário internacional e dificultará a recuperação econômica no período pós-pandemia. A audiência foi presidida pelo senador Styvenson Valentim (Podemos-RN).
Pesquisadora em saúde pública da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nelzair Vianna comentou que a História mostra que todas as pandemias têm uma relação demonstrável com a questão ambiental e em sua maior parte disseminaram-se como zoonoses (doenças infecciosas dos animais transmissíveis ao ser humano). Segundo ela, essa é uma das hipóteses para o surgimento e disseminação da covid, possivelmente vinculada à interferência humana nos ecossistemas que provoca a migração dos hospedeiros — uma situação agravada pelas grandes aglomerações e pela maior intensidade de deslocamento humano.
— Existem ainda muitas lacunas na base social, muitas desigualdades, em que uma parte da população ainda não tem acesso ao básico, aos recursos naturais mínimos de água, de saneamento, de moradia. Enfim, várias questões sociais ainda precisam ser equilibradas neste contexto de desigualdades que acaba sendo um campo fértil para a proliferação de doenças.
Para Nelzair, que citou os riscos ambientais resultantes do agravamento do aquecimento global, o conceito de desenvolvimento sustentável também tem que levar em conta o risco de pandemias, e é preciso “sair das caixas” da mera questão de saúde para pensar a recuperação do ambiente no cenário pós-covid.
— O investimento na prevenção da pandemia traria benefícios líquidos para o mundo. E reconhecemos que, à medida em que o mundo emerge da pandemia da covid-19, prioridades podem mudar para lidar com o aumento da demanda, do desemprego, das doenças crônicas e dos graves prejuízos financeiros que a gente observa em função da pandemia.
Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez salientou o vínculo entre o enfrentamento de doenças e o grau de imunidade da população, que só funcionará bem pela confluência de fatores como água e ar de qualidade, boa alimentação e um “ambiente equilibrado esteticamente” para a qualidade da mente.
— Além de estarmos consumindo alimentos de péssima qualidade, nós estamos vivendo em cidades tristes, desconectadas, que deprimem as pessoas. Há uma verdadeira epidemia de uso de antidepressivos, e isso mantém o sistema imunológico numa péssima situação — lamentou.
Nelzair também acusou a produção rural brasileira de copiar um modelo de produção geneticamente modificada que, pelo uso intensivo de agrotóxicos, destrói o conteúdo de bactérias do solo e aumenta a contaminação dos rios. Ele avaliou que, se o Brasil tivesse optado por ser exportador de soja orgânica, poderia diminuir os custos de produção e obter um aumento de 30% de receita. No entanto, em sua opinião, o Brasil pode ser pioneiro numa “virada maravilhosa em direção à felicidade” por meio do investimento na criatividade científica.
— A gente para de eliminar as maiores riquezas que nós temos na nossa biodiversidade, na nossa segurança hídrica, na nossa riqueza hídrica, a maior do mundo, e nós passamos a ter empregos muito melhores — concluiu.
Representando a organização WWF Brasil, Mariana Ferreira afirma que o surgimento de novas doenças nas últimas décadas não é por acaso em face de uma “relação desequilibrada” com o meio ambiente.
— Ela está associada, sim, ao ritmo de degradação do meio ambiente, nos seus vários níveis e nas suas várias formas: poluição, destruição dos habitats naturais, compactação do solo, fragmentação dos ambientes, comércio de espécies, entre outros — definiu.
Para ela, um cenário pós-pandemia com volta aos “mesmos padrões de sempre” de produção e consumo deixará o mundo cada vez mais vulnerável a novas pandemias. Mariana citou vários países que já incluem o meio ambiente como valor fundamental para seus planos de recuperação. Em sentido contrário, porém, o Brasil foi apontado como um dos países que apresentaram “muito retrocesso” na proteção ambiental durante a pandemia. Essa atuação, disse, levará o Brasil a um futuro sem saúde e sem qualidade de vida.
— A gente teve mais de 57 atos legislativos enfraquecendo a legislação ambiental, sendo que metade dessas mudanças foi exatamente no período da pandemia. A gente teve uma redução de cerca de 70% das autuações e multas ambientais no início de 2020. As áreas protegidas foram enfraquecidas por redução dos seus orçamentos e mudanças nas equipes que eram especialistas, conheciam essas regiões e foram deslocadas para outros cargos. A gente teve uma série de propostas de redução ou descriação de áreas protegidas — lamentou.
Em resposta a comentário da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que chamou a atenção para o “descompromisso” do governo federal com a política ambiental, Nelzair Vianna contrastou a situação com os movimentos e ações pelo controle das mudanças no clima que são conduzidos em nível municipal e têm apoio internacional. Ela defendeu grandes investimentos na educação da população e o engajamento da ciência e da sociedade civil para mudança das políticas públicas.
— A gente precisa se amparar na melhor proteção das leis, e essas leis precisam usar o conhecimento científico e precisam envolver toda a sociedade nessa percepção de risco, para que a sociedade inteira possa se engajar nessa decisão.
Sobre o assunto, Francisco Milanez atacou duramente a política externa brasileira, que estaria sendo degradada por um projeto de “entrega do país”, e avaliou que o país tem todos os recursos para impor-se no cenário internacional como um modelo de saúde humana e planetária.
— Se nós fizéssemos essa transformação agroecológica, o nosso SUS iria economizar milhões, nós iríamos dar um serviço muito melhor para as pessoas por muito menos preço.
Ele frisou que, entre 2004 e 2012, a redução em mais de 70% as taxas de desmatamento na Amazônia se deu junto com a maior expansão da exportação de commodities agrícolas, e os próprios empresários da produção de alimentos já manifestam preocupação com os projetos de lei que tenderiam a dar benefícios à grilagem de terras e ao desmatamento ilegal.
Mariana Ferreira opinou que a mudança do ministro do Meio Ambiente — em junho, Ricardo Salles foi substituído por Joaquim Álvaro Pereira Leite — não altera a política de governo de “desmonte ambiental”, que associou a um retrocesso de vinte anos nas conquistas do Brasil no combate ao desmatamento. Para ela, a ocorrência de eventos climáticos extremos reduzirá o espaço de manobra para uma reconstrução ambiental mais rápida, e a falta de profundas reformas na política ambiental poderá representar obstáculo à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
— A gente começa a ter impactos da questão ambiental em outros mecanismos globais, não só de acordos multilaterais, mas também mecanismos de comércio entre países que prejudicam, inclusive, o protagonismo econômico do país em algumas agendas.
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