O atentado a um dos mais importante jornalistas holandeses em pleno centro de Amsterdã na noite de terça-feira (6/7) fez lembrar que nem em países que asseguram a liberdade de imprensa os profissionais estão protegidos.
Peter R. de Vries, de 64 anos, conhecido por suas reportagens investigativas sobre crime organizado, está lutando pela vida em um hospital depois de levar cinco tiros quando deixava o prédio da emissora de TV RTL Boulevard.
A polícia prendeu suspeitos logo após o crime. Nesta quinta-feira (8/7) um rapper de Roterdã foi acusado de ter disparado contra o jornalista.
Delano Geerman, 21, que se apresenta como “Demper” ou “Slick” tem antecedentes criminais e participa de um canal no YouTube chamado 101Barz, acusado de glorificar a violência. O site holandês GeenStijl postou uma foto de Geerman posando com uma réplica de arma de fogo.
O jornal De Telegraaf apontou ligações dele com um dos principais criminosos do país, Ridouan Taghi, alvo de investigações feitas por De Vries. Outro homem preso, o polonês Kamiel Egiert, de 35 anos, tem um mandado de prisão europeu pendente por furto e assaltos, emitido pela Polônia.
Os tiros que De Vries recebeu foram à queima-roupa, um deles na cabeça, em uma rua próxima à Leidseplein, uma das principais praças do centro da cidade. Imagens circularam nas redes sociais e no YouTube, mas foram posteriormente retiradas.
Os homens são das cidades de Maurik e Tiel, onde atua o grupo comandado por Taghi, que enfrenta acusações de assassinato, tráfico de drogas e crime organizado.
Há dois anos, a polícia avisou a De Vries que ele estava na “lista de alvos” de Taghi por dar apoio destacado à principal testemunha contra o criminoso. O jornalista chegou a revelar no Twitter que estava sob ameaça, mas optou por não aceitar proteção policial.
De Vries vem trabalhando há um ano como conselheiro de Nabil B (nome completo foi omitido por segurança), que já pertenceu a uma gangue e se tornou testemunha no julgamento de Ridouan Taghi.
Depois que “B” foi à polícia com informações sobre o criminoso, seu irmão foi assassinado. Seu advogado, Derk Wiersum, também foi morto a tiros, em 2019.
O ataque foi ousado por alvejar uma figura conhecida e respeitada na mídia. Peter R. de Vries é um profissional premiado, que tem em seu currículo a cobertura de grandes casos criminais.
Seu livro sobre o sequestro do magnata da cerveja Freddy Heineken, em 1983, foi adaptado para um filme de Hollywood estrelado por Anthony Hopkins.
Ele ficou ainda mais popular comandando desde 1995 um programa de TV sobre crimes.
De Vries trabalhou para veículos como De Telegraaf, revista Panorama e Algemeen Dagblad. Em 2008, ganhou o prêmio Emmy Internacional por sua investigação sobre o desaparecimento da adolescente Natalee Holloway em 2006, em Aruba.
Ele atuou em dupla com o jornalista Cees Koring durante cinco anos. “O jornalismo investigativo e as reportagens criminais ainda estavam em sua infância na década de 1980. Fomos pioneiros. As aparições de Peter na TV deram um rosto à nossa atividade, levando-a a um nível superior”, disse.
No dia seguinte ao atentado, Koring falou sobre a tenacidade do colega em reportagens investigativas:
“Peter nunca desiste, desistir não é uma opção.”
O caso chocou o país e a Europa. O governo da União Europeia se manifestou. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, falou na sessão do Parlamento sobre o caso no dia ao crime, afirmando que ser “um atentado aos valores fundamentais e à liberdade de imprensa”.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, lembrou que “os jornalistas que investigam potenciais abusos de poder não são uma ameaça, mas sim um trunfo das nossas democracias”.
A Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) divulgou um comunicado condenando o ataque.
O secretário-geral da Associação de Jornalistas Holandeses, Thomas Bruning, disse: “Isso atinge o jornalismo bem no coração. […] De Vries é um combatente do crime feroz, persistente e corajoso. Só podemos esperar que ele sobreviva.”
O presidente da IFJ, Younes MJahed, disse: “Estamos chocados com este ataque contra um jornalista que relatou extensivamente sobre assuntos de interesse público e assumiu enormes riscos para dizer a verdade. Este é um ataque à liberdade de mídia e instamos as autoridades a investigarem rapidamente isso caso e processe os que estão por trás dessa tentativa de homicídio.”
Segundo análise da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a Europa é o continente mais favorável à liberdade de imprensa, mas a violência contra jornalistas aumenta. Em países como Hungria, Polônia e Grécia, há registro de episódios envolvendo cerceamento de informações e prisões de jornalistas.
A Hungria, governada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, vive estado de emergência desde março de 2020. A legislação em vigor pune a divulgação de notícias falsas, o que é usado sistematicamente pelo poder central contra publicações desfavoráveis ao governo.
O país “assume sem constrangimento algum sua escolha política de reprimir a liberdade de imprensa e de expressão”, afirma a RSF. A postura de Orbán, segundo a organização, influencia ainda outros países do bloco europeu, como Polônia e Eslovênia, a reprimir o jornalismo e a liberdade de expressão. No Reino Unido, a prisão de Julian Assange, fundador do Wikileaks, é considerado um caso emblemático.
Recentemente, a organização publicou um estudo em que aponta 22 jornais do mundo “assassinados” por governos nos últimos cinco anos. Os métodos vão desde sufocamento financeiro, com corte de verbas, ao confisco de bens e à proibição de compra de papel para imprimir as publicações.
A RSF aponta que além do jornalismo investigativo, a cobertura de manifestações tem sido um trabalho perigoso para jornalistas. Casos de agressões na França, Itália e Alemanha foram registrados, bem como episódios de violência policial contra profissionais da imprensa na Bulgária, Polônia e Sérvia.